Certa manhã, despertando de sonhos intranquilos, uma barata até então anônima se vê transformada em um humano monstruoso: o primeiro ministro da Grã-Bretanha, Jim Sams. Até ali visto como um homem titubeante e sem pulso, que hesita em aplicar uma drástica mudança exigida pelo povo inglês em um plebiscito, Sams, com sua "metamorfose", logo se transforma em um outro tipo de político, usando de vontade férrea e dos recursos do poder para tornar real uma das ideias mais inesperadas – e estúpidas – da política recente.
Esse é o mote de A Barata, a curta novela mais recente do autor inglês Ian McEwan, uma sátira mais do que aberta, apaixonada ao processo do Brexit, plenamente concretizado no último dia 31 de janeiro, e que determinou a saída da Inglaterra da União Europeia.
Em seu conto que mistura farsa agressiva e ironia ácida, McEwan substitui o Brexit por outra ideia ainda mais polêmica: devido à decisão da votação popular, a Inglaterra precisa adotar em pouco tempo o “reversalismo”: a ideia de inverter a direção do fluxo de dinheiro: “Ao fim de uma semana de trabalho, uma funcionária entrega dinheiro à empresa por todas as horas que labutou. Mas quando ela vai às lojas é generosamente compensada pelos preços de varejo de todos os artigos que leva”.
Uma alteração tão radical em um mundo globalizado em que o comércio com outros países é tão intenso pode jogar o país no caos e em um isolamento econômico, mas Sams, a barata-primeiro ministro, não se importa. Ele é parte de uma horda de insetos infiltrados com um plano – e que McEwan associa diretamente à onda política de extrema direita que varreu o mundo nos últimos anos. De certo modo, ele faz do centro do romance inquietações que havia partilhado com o público em uma entrevista de 2016, durante sua passagem pelo Brasil para o ciclo Fronteiras do Pensamento:
...na Europa, e penso que também nos Estados Unidos, há esta raiva que é ao mesmo tempo difícil de definir e entender. Um sentimento de impotência. Nós vemos esta raiva nos apoiadores de Donald Trump (nos Estados Unidos), nos integrantes dos partidos nacionalistas que estão ficando mais fortes na Europa, na França, na Grã-Bretanha, na Holanda, na Alemanha. É um tipo de raiva imprudente que quer mudar tudo. E é nesse espaço que surgem os demagogos, normalmente na direita. É difícil definir Trump em termos políticos, até porque ele não parece ter nenhum tipo de pensamento político, o que o torna um caso muito interessante, já que muitos à direita não parecem interessados em votar em um idiota tão perigoso. Estamos em tempos turbulentos. Vivemos um clima muito forte contra a União Europeia, não apenas no Reino Unido, mas também na França e na Alemanha. E o que impulsiona isso é um novo tipo de nacionalismo, um tipo de desespero. E se não tentarmos entender isso, corremos o risco de ser soterrados por ele.
Em um posfácio ao livro, incluído nesta edição, McEwan esclarece que a ideia original, claro, só poderia ser tributária de A Metamorfose, de Kafka (1883-1924), que “se impõe diante de qualquer tentativa de recorrer à troca física entre um homem e um inseto”. Ao mesmo tempo, ele diz que, após essa necessária reverência, ele se volta mesmo é para Uma Modesta Proposta, uma das joias da sátira na língua inglesa na qual Jonathan Swift (1667-1745) apresenta a sugestão de que a pobreza na Irlanda poderia ser solucionada se os miseráveis irlandeses fossem autorizados a vender seus recém-nascidos como comida para os mais ricos.
McEwan é um escritor brilhante, isso já se sabe. Mas muitos de seus melhores trabalhos casam um ponto de vista individual e humano com o quadro maior que ele decide pintar. É por isso que Sábado, por exemplo, seu livro sobre a paranoia pós-11 de setembro, é tão melhor que Solar, sua farsa cômica sobre aquecimento global. Nesta nova obra, sua raiva palpável, em vez de ser o combustível, prejudica o casamento entre as duas formas de absurdo que ele quer combinar, a de Kafka, sutil, ancorada no surpreendente e no inesperado, e a de Swift, que defende uma ideia grotesca usando a mais irrepreensível lógica, chamando a atenção para o absurdo do processo, e não do fato. Tal incompatibilidade compromete o conjunto.
A Barata
De Ian McEwan
Tradução de Jorio Dauster.
Companhia das Letras, 104 páginas, R$ 39,90 (papel) e R$ 27,90 (e-book).
LANÇAMENTOS
Espaço para sonhar
De David Lynch e Kristine McKenna
Esta colagem de vozes, fotografias e depoimentos forma uma biografia pouco convencional mas perfeitamente adaptada a seu biografado, o diretor de cinema David Lynch. Intercalando depoimentos de Lynch à jornalista Kristine McKenna, textos do próprio punho do cineasta, além de declarações de amigos, colegas de trabalho e colaboradores do autor de Twin Peaks (do músico Sting à atriz e ex-mulher do diretor Isabella Rossellini), a biografia monta um panorama multifacetado do autor e de suas inquietações. Tradução de Maria Cristina Cavalcanti. Best Seller, 600 páginas, R$ 99,90.
Maggie Cassidy
De Jack Kerouac
Escrito em 1953, no mesmo ano do clássico Os Subterrâneos, este romance de Jack Kerouac não teve no Brasil a mesma sorte dos outros livros do autor e permanecia até agora inédito por aqui. Como em boa parte de sua melhor ficção, Keroauc romantiza neste livro elementos de sua biografia, mais especificamente nos dias de escola de seu alter ego Jack Duluoz (também presente na novela Tristessa) e a experiência de sua primeira paixão, a jovem do título, em uma cidadezinha da Nova Inglaterra. Tradução de Rodrigo Breunig. L&PM , 208 páginas, R$ 39,90.
Rua de Dentro
De Marcelo Moutinho
Marcelo Moutinho, autor de livros como A Palavra Ausente (2011) e Ferrugem (2017), tira o título deste livro de contos de uma expressão popular comum no Rio, a de que alguém prefere ir “pela Rua de Dentro” em vez de pela principal. Com esse mote, Moutinho constrói um mosaico de 13 narrativas de personagens nada típicos do Rio de Janeiro: de uma jovem trans a cenas corriqueiras da paisagem carioca flagradas não por seus tipos recorrentes, e sim por personagens à margem. Record, 128 páginas, R$ 39,90.
Prisioneiros da Geografia para Jovens Leitores
De Tim Marshall
Com o subtítulo Nosso Mundo Explicado em 12 Mapas, a obra adapta outro livro do autor, o best-seller Prisioneiros da Geografia, em uma versão resumida e ilustrada voltada ao público jovem. O objetivo é mostrar, em cada um dos mapas, como a geografia afeta questões políticas e sociais. Temas como a Revolução Industrial , a divisão da riqueza, a escravidão dos povos africanos e a influência do petróleo são tratadas em textos curtos combinados às ilustrações de Grace Easton e Jessica Smith. Tradução de Maria Luiza X. de A. Borges. Zahar, 78 páginas, R$ 99,90.