Na Praça da Alfândega, um retorno ao passado comprova que não só por meio da escrita se contam as histórias do Rio Grande do Sul. Afixadas em uma caixa de madeira sobre um tripé vermelho, fotografias em preto e branco enfeitam a colorida Feira do Livro. Com a câmera, são retratados anônimos, festejos e união de casais apaixonados desde os anos 1960, quando Varceli Freitas Filho, 65 anos, iniciou sua paixão pela fotografia ao lado do pai.
— Sou o único fotógrafo lambe-lambe da cidade. E não sei se passo deste ano — conta, triste, revelando que, entre seus medos da aposentadoria, está o de desapontar os fãs da técnica centenária.
Personagem das ruas de Porto Alegre, o retratista diminuiu o ritmo de trabalho em 2017, quando deixou de fotografar diariamente na praça XV. Hoje, vende as lembranças aos domingos no Brique da Redenção e em eventos como a Feira. O valor de quatro fotos, R$ 35, assusta os interessados.
— Sempre tenho que explicar para quem acha caro. O material (papel, revelador e fixador) vem da Inglaterra e custa muito. Se eu baixar pra menos de R$ 30 já dá pra prejuízo — calcula, expondo o motivo que deve levá-lo a abandonar o ofício.
A cabeça coberta pelo pano preto protege o filme da câmera da luz externa. Enquanto procura o foco, estende e recolhe uma espécie de sanfona que suporta a lente, "um zoom manual", como brinca. Em um balde, a mágica acontece: a imagem recém revelada é lavada e cuidadosamente secada com um pano, antes de ser entregue ao cliente. O negativo ele entrega de brinde, em troca de abraços espontâneos seguidos de palavras de carinho, atitude frequente nas abordagens dos amigos que ganhou com a exclusiva profissão.
— É uma cultura que não se tem mais. Meu pai contava como era, e eu quis levar isso para o meu filho — afirma o motorista Ari Fernandes, 38 anos, enquanto recebe o envelope com as quatro poses clicadas ao lado da Rua dos Andradas.
Sobre a formação que a experiência da vida lhe deu, o artista explica que o termo "lambe-lambe" é referência aos gestos dos fotografados, que lambiam a ponta dos dedos antes de ajeitar a sobrancelha e os cabelos. Jogando a cabeça para trás em um movimento rápido, gargalha ao ser questionado sobre quantas mil fotos seu equipamento já registrou desde 1938, quando a família iniciou o serviço.
— Eram mais de 20 fotógrafos perto do Mercado Público. Todo mundo ia lá para fazer todo tipo de foto, de 3x4 a ensaios e contratar para casamentos.
Contador de causos - sempre com o orgulho de ter vivenciado momentos históricos -, Varceli relembra da enchente de 1941, quando o pai trabalhou com água próximo à cintura no centro da Capital.
— Eu carrego uma bandeira, o lambe-lambe, que tem mais de 100 anos em Porto Alegre. O dia que encerrar, eu vou estar nessa história, como os bondes.
A renda mensal da fotografia - em torno de R$ 2 mil - sustenta a humilde e acolhedora casa no bairro Santa Rosa de Lima, na Zona Norte. Sem desgrudar do smartphone, a esposa de Varceli, Liege Machado de Freitas, 66 anos, diz que o marido não gosta de nada tecnológico, como celular com internet ou computador.
— Já eu adoro fotografia no celular - conta, sorridente, sob o olhar de reprovação do marido.