Contista e romancista multipremiado com livros de uma linguagem exigente, em que as palavras são por si só blocos de signos e não apenas veículos de mensagens, o porto-alegrense Altair Martins, em seu novo livro, imagina dois irmãos em uma viagem improvisada a fim de cumprir uma missão. Um trajeto que de certo modo espelha a jornada do próprio Altair como autor, já que neste novo romance, Os Donos do Inverno, com autógrafos marcados para esta terça-feira (22) na Bamboletras, a linguagem dá um passo atrás, se despe do denso barroquismo poético habitual, e a história e o diálogo tomam o centro da narrativa. Uma mudança drástica motivada pela recepção de seu romance anterior, Terra Avulsa.
— Terra Avulsa foi um livro que não foi lido. Não houve nem discussão se era bom ou ruim, ele foi ignorado. Em uma conversa com um amigo, o escritor de Tocantins Jadson Barros Neves, ele comentou que achava aquele livro muito cerebral. Era um livro de linguagem, realmente com pouco enredo, só um cara trancado no apartamento, e ele me perguntou por que, no próximo livro, eu não escrevia centrado na narrativa. Fiquei com aquilo na cabeça e quis escrever uma história, deixando que o restante passasse ao segundo plano, fiz um esforço enorme para não priorizar a linguagem — conta o autor, em entrevista por telefone.
Os Donos do Inverno narra a jornada de dois irmãos de criação, Fernando e Elias, que passaram anos sem se falar, afastados pela morte trágica de um terceiro irmão, o jóquei Carlito, vitimado por um acidente de moto às vésperas de sua grande chance na carreira. Mais de 20 anos depois, certa manhã, Elias, professor, liga para Fernando, taxista, e apresenta um plano inusitado: quer que ambos se apossem dos ossos do irmão falecido para levá-los a um importante prêmio de hipismo na Argentina, o mesmo no qual o irmão teria competido se não tivesse morrido. Se o plano já é por si só estranho, a motivação de Elias também é: a missão foi dada pela égua Onesita, que o irmão costumava montar e que apareceu numa visão enquanto Elias dava uma aula de biologia.
Hipódromo
Elias tem o dom de falar a língua dos cavalos. Também não sente frio, usando camiseta no rigor do inverno. O personagem é o ponto de encontro da narrativa de Altair com elementos de realismo mágico, presentes em maior ou menor grau ao longo de toda a obra pregressa do autor, mas aqui explorados de modo mais sistemático.
— Eu não tenho dúvida nenhuma de que esse personagem fala com os cavalos. Para mim, isso está mais ligado ao realismo mágico, a ideia de que a gente não estranha esses elementos fantásticos porque passamos a acreditar neles. A crença é o determinante do realismo mágico, quando se pega algo sobrenatural e se naturaliza através da fé ou da normalização da estranheza da América Latina — comenta.
Embora guarde afinidades temáticas ao investir em relações familiares fraturadas, o livro é, comparado a Terra Avulsa e mesmo ao romance de estreia do autor, A Parede no Escuro, uma guinada radical. Se nos dois anteriores a linguagem era o centro dominante, girando em volta de episódios que funcionavam como marcos estáticos para a prosa lenta, neste a principal característica é o movimento.
Reunidos após anos de silêncio, os irmãos passam a juventude em comum em revista enquanto avançam para concretizar etapas de seu plano: conseguir dinheiro, retirar a ossada do irmão do cemitério, pôr o pé na estrada em direção à Argentina, evitar a polícia, já que não seguiram os procedimentos estritos para o traslado dos ossos. O avanço constante espelha as carreiras que o irmão Carlito disputava no hipódromo do Cristal (os irmãos carregam em sua viagem uma imagem de fotochart de uma das corridas vencidas por ele).
Parte da ambientação do romance no mundo do turfe e o próprio personagem Carlito são uma homenagem de Altair ao pai, o jóquei Carlos Martins, ele próprio morto em um acidente de moto em 1981.
— Tive essa vantagem de ter um pai jóquei, e, por isso, eu vivia no (Hipódromo do) Cristal. Quando criança, eu estudava de tarde e todas as manhãs, praticamente, estava no Cristal. Fiquei pensando que era um ambiente no qual eu cresci, que eu tinha um conhecimento em primeira mão e que eu não me lembrava de ter sido abordado em romance no Rio Grande do Sul — conta.
O movimento por vezes se interrompe para interações episódicas com pessoas e (muitos) animais encontrados pelo caminho. Se Terra Avulsa era um livro que praticamente recusava o mundo externo, com seu protagonista decidido a fazer do próprio apartamento um país e de seus objetos inanimados seus únicos compatriotas, Os Donos do Inverno é um romance aberto à paisagem, em especial as planuras extensas das fronteiras entre Brasil, Uruguai e Argentina, um território que o autor pesquisou em três viagens de ida e volta para buscar elementos para a ambientação do livro.
— Há uma relação com os animais e o sofrimento, além de uma melancolia que percorre o cenário. Nessa região entre Brasil, Uruguai e Argentina, a gente realmente vê aquela estética do frio de que o Vitor Ramil fala. É um universo horizontal e triste, tem algo de milonga. É possível ver o horizonte distante. É uma cancha reta — analisa.
Os Donos do Inverno
- Romance. Não Editora, 256 páginas, R$ 44,90.
- Sessão de autógrafos em Porto Alegre: terça-feira (22), às 19h, na livraria Bamboletras, no Shopping Nova Olaria (General Lima e Silva, 776).
- Em Caxias do Sul: 31 de outubro, às 19h, na livraria Do Arco da Velha (Rua Dr. Montaury, 1.570).