O Tribunal da Quinta-Feira, sétimo romance do premiado escritor gaúcho Michel Laub, publicado em 2016, discutia um tema que se tornou cada vez mais presente na era das sentenças definitivas, das verdades absolutas e dos justiçamentos e absolvições sumários promovidos nas redes sociais. Na era do fim da privacidade, voluntária ou não, Laub conta a história de um publicitário paulista quarentão que encara um tsunami pessoal: sua ex-mulher descobriu sua senha do computador e tornou públicos e-mails que ele trocava há anos com um amigo homossexual e soropositivo. Comentários íntimos, muitas vezes impregnados de humor sarcástico e termos pesados, nos quais o protagonista fala da crise no casamento e do caso com uma jovem de 20 anos, o colocam sob os holofotes – e o "julgamento" – de uma grande rede de conhecidos e estranhos na internet.
Entre outras abordagens (há também uma linha narrativa que recupera o impacto midiático das primeiras epidemias do vírus da aids, nos anos 1980), o livro discute como conversas e episódios íntimos, com contextos que só podem ser apreendidos por completo por seus interlocutores, muitas vezes ganham uma dimensão danosa fora de seu ambiente privado.
À luz do recente episódio envolvendo o jogador de futebol Neymar, que se defendeu de uma acusação de estupro expondo em uma rede social conversas e imagens íntimas da jovem que o acusou, Laub conversou com Zero Hora por e-mail. Mas quanto ao caso concreto do jogador, avisou:
– Não quero comentar a culpa ou inocência do Neymar porque não tenho elementos para tanto.
Seu livro O Tribunal da Quinta-Feira flagra um panorama recorrente nos últimos anos, o da mobilização das massas em redes sociais opinando no calor da hora sobre temas do noticiário, mesmo escândalos ou acusações criminais. Como vê o panorama agora, ainda mais depois que essa mobilização fácil assumiu contornos políticos?
No uso das redes públicas tradicionais, como Facebook e Twitter, não acho que tenha mudado tanto. O comportamento médio é o mesmo, as recompensas narcísicas para quem julga (e para quem é enfático, simplista e assim por diante) continuam lá. Mas, como sempre, novas tecnologias trazem novos impactos.
O WhatsApp, que é pouco citado no meu livro (a maior parte da história se refere a uma troca de e-mails ocorrida em 2009), talvez seja o grande exemplo. Porque se trata de uma rede privada com alcance público, e essa natureza híbrida facilmente gera o pior dos mundos: mensagens políticas de todo tipo chegam a um número enorme de pessoas, e ao mesmo tempo têm relativa proteção de anonimato. A par de outros vários motivos a considerar, não acho uma coincidência que resultados bizarros de eleição, como Brexit, Trump e Bolsonaro, tenham começado a aparecer com tanta frequência depois que os marqueteiros descobriram essa ferramenta.
Você diz no livro que talvez haja um momento em que todos passem por algo assim, dada a dinâmica das redes. Ainda pensa assim?
Sim, e isso é uma das questões do livro: o fato de que as campanhas de justiçamento (tenham elas bons ou maus motivos) passaram a atingir as pessoas comuns, e não mais as públicas apenas. Deixou de ser uma escolha do tipo quero ou não participar das redes. Pouquíssima gente pode abrir mão do WhatsApp, por exemplo, até por motivos profissionais. E quem tem WhatsApp está exposto, basta uma pessoa fazer uma print de uma conversa sua – a não ser que você passe o resto da vida cuidando de cada palavra escrita nas dezenas de mensagens que troca todos os dias. Mesmo que isso aconteça, a própria coleta de dados na Internet é tão grande e constante que qualquer um está sujeito a um vazamento que torne públicos seus hábitos de consumo, seus interesses, sua sexualidade etc.
A transformação das redes em um tribunal e a volta da humilhação antecipada como parte da punição parece consolidada e sem volta. O que você acha que poderia ser feito para amenizar os estragos das repercussões de humilhações ou perseguições online?
Não acredito em qualquer forma de controle prévio nessa área. Nem na boa fé das corporações que comandam as redes. A história ensina que a tecnologia e a ganância acabam sempre vencendo. Quando não vencem, a alternativa (censura estatal, por exemplo) é pior. Os mecanismos de reparação judicial para o indivíduo são válidos, mas muitas vezes não têm efeito social, na mudança da imagem que foi destruída. Se dá para ser otimista nessa área, e a partir do que falei na resposta anterior, resta imaginar que a sociedade fique em tal grau saturada da publicização da intimidade, da mobilização acusatória, que crie algum tipo de anticorpo contra isso. Uma coisa é conhecer uma pessoa que sofreu assassinato de reputação. Outra é conhecer 150 pessoas, algumas delas amigos, familiares, gente que respeito e acredito estar sendo injustiçada. É claro que nesse último caso a minha visão do problema mudará.
O caso recente do Neymar parece aprofundar uma particularidade, também. Quando se pensa nos "tribunais do Facebook", para usar a expressão da música de Tom Zé, muitas vezes está-se pensando na velocidade com que as pessoas na rede condenam envolvidos sem esperar pela devida investigação. Neste, parece haver um grande número de pessoas também dispostas a absolver. O que essa pressa no julgamento pode significar no futuro da sociedade, das relações interpessoais até?
Não quero comentar a culpa ou inocência do Neymar porque não tenho elementos para tanto. A Justiça é que vai resolver de acordo com as provas que forem apresentadas. Mas posso falar de algo que é sintomático nesse caso, e que não entra no mérito da acusação original: o fato de ele ter escolhido fazer uma defesa pública e leiga logo depois da denúncia, algo que dificilmente um advogado aconselharia a fazer (vide, por exemplo, o crime que ele cometeu ao expor imagens íntimas alheias). Isso mostra como as redes estão à frente da Justiça no imaginário contemporâneo. Mesmo para uma pessoa pública como o Neymar, um comportamento assim seria – acho – impensável 15 anos atrás. Para o futuro da sociedade eu não tenho dúvida de que essa instantaneidade, esse jogo para a torcida, tudo contrário a qualquer princípio mínimo de justiça, é algo péssimo. Agora, em que modelo de sociedade eu estou pensando? Talvez eu seja um dinossauro de 46 anos, filho de um certo consenso humanista do pós-guerra que instituiu (ao menos no Ocidente) noções como a da democracia representativa baseada no estado de direito. Basta olhar pela janela para ver que esse mundo acabou.