Até que ponto a facilidade de comunicação e agregação na internet não tornou fácil também a formação de bandos dispostos a realizar um "linchamento" moral de um determinado personagem, mesmo movido por boas intenções? É esse o foco de O Tribunal da Quinta-feira, romance mais recente do escritor Michel Laub.
Aos 44 anos, Laub, nascido em Porto Alegre, mora hoje em São Paulo. Autor de sete romances e um livro de contos, é um dos principais escritores brasileiros de sua geração. Em O Tribunal da Quinta-feira, ele aborda os episódios de humilhação pública que se tornaram periódicos na era das redes sociais. Seu protagonista, um publicitário que está se divorciando, tem uma conversa com um amigo divulgada na internet e passa a ser alvo de uma onda de execração pública.
Com um estilo próprio, em que as frases longas voltam insistentemente a temas já abordados, sempre acrescentando um novo detalhe antes ignorado que dá um novo panorama ao conjunto, Laub não se concentra apenas na humilhação virtual a que o personagem é submetido, também reconstitui o impacto da chegada da aids ao Brasil e ao mundo, três décadas antes. A estrutura do livro aproxima os discursos moralistas que se tornaram frequentes nas primeiras épocas da epidemia com o puritanismo generalizado da era dos linchamentos em rede.
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– Hoje surge uma nova tecnologia, a das redes sociais, que faz as coisas retroagirem a um estado anterior em várias frentes, uma delas é o ressurgimento do conservadorismo mais tacanho – diz.
Apesar de seu livro lidar com um tema contemporâneo, o dos linchamentos virtuais, você continua recuperando, pela voz de um narrador que recorda, na idade adulta, temas que marcaram a juventude de sua geração. É um projeto consciente?
Não é. Talvez em algum momento tenha sido, mas no caso deste livro minha intenção inicial era fazer algo diferente do que havia feito. Mas, assim como aconteceu no Diário da Queda, que também começou com essa intenção de rompimento, eu nunca consigo. Ao longo da escrita, quando você vê, está repetindo situações narrativas que já usou em outros romances, e às vezes só depois de pronto me dou conta. Neste livro mesmo, tem a coisa de que a história se passa entre um domingo e uma quinta-feira, uma coisa bem demarcada. E depois me dei conta de que em O Segundo Tempo já havia feito isso, pegando uma semana de Gre-Nal. Na hora não pensei nisso, mas acabou retornando, porque acho que aí está a verdadeira natureza do escritor, aquela coisa meio inconsciente que você, mesmo não querendo, acaba colocando na obra reiteradamente.
Quando você começou a planejar O Tribunal da Quinta-feira já tinha a ideia de contrapor o linchamento virtual contemporâneo com a chegada da aids nos anos 1980 ou foi algo que se moldou ao longo da composição?
Não sei se consigo separar muito o antes e o durante, mas dá para dizer que já numa fase inicial do livro o paralelo ficou evidente entre a trajetória de um amigo do protagonista que enfrenta um tipo de preconceito “x” em relação a sua própria sexualidade e o que acontece com o personagem. Acho que dá para fazer um paralelo entre as discussões morais que havia nos anos 1980 e as que existem hoje. E havia também a relação com a tecnologia. A aids foi uma doença que surgiu inesperadamente e mudou a maneira como as pessoas lidavam com o sexo, e, se pensar bem, ela aparece depois de uma tecnologia que ajudou a detonar a revolução sexual, a pílula nos anos 1960. A pílula foi uma tecnologia que surgiu para facilitar a vida das pessoas, e a aids representou um retrocesso até mesmo tecnológico, porque não havia na medicina uma resposta para aquilo. Era como voltar aos anos 1950, em que as relações sexuais representavam o constante perigo de gravidez indesejada, ou, um pouco antes, de contrair doenças como sífilis. E uma ideia de constante pecado moral começa a cercar isso. Aí a própria tecnologia conseguiu atenuar a questão da aids com a evolução dos remédios etc. E hoje surge uma nova tecnologia, a das redes sociais, que faz as coisas retroagirem a um estado anterior em várias frentes, uma delas é o ressurgimento do conservadorismo mais tacanho. Por outro lado, há um discurso identitário teoricamente muito avançado mas que também criou uma outra espécie de puritanismo que se vê nas redes. Então, o livro fala desses dois extremos de certo modo.
Você falou sobre o conservadorismo, mas em O Tribunal da Quinta-feira, o "linchamento virtual" do protagonista se dá por frases que são interpretadas como sexistas e desrespeitosas, levantando questões como a forma como homens se referem às mulheres em conversas privadas; como tratam as mulheres; relações de trabalho entre homens e mulheres, política sexual. É um escândalo menos conservador e mais ligado ao "campo progressista".
É engraçado falar disso, porque talvez seja essa a impressão que acabe ficando. Eu sempre penso que, quando você escreve um livro de ficção, você está pensando no público de ficção contemporânea no Brasil, que é um grupo pequeno e esclarecido. Acho difícil que um evangélico radical vá ler o meu livro, ou que um eleitor do Bolsonaro o leia, ou que, se ler, eu vá ter impacto sobre esse tipo de leitor. Não estou conversando com essas pessoas, estou dialogando com a minha timeline. E acredito que, como escritor, você tem que ter um pouquinho de coragem para confrontar isso. Não porque eu concorde com as opiniões do protagonista, mas acho interessante confrontar as certezas desse público que é o meu público. Todo mundo concorda que boçais homofóbicos que batem em gays na rua, que racistas declarados são um absurdo. Não tem muita discussão com relação a isso para pessoas esclarecidas como um escritor e seu leitor de ficção no Brasil. Então, acredito que a literatura pode ser mais interessante quando pega outras certezas muito férreas desse grupo social e bota ali uma cunha de relativização. Claro que nisso há um certo risco de você ser visto como alguém que está pregando uma coisa contrária à sua intenção. Mas não acho que seja o meu caso, porque penso que o narrador do livro é suficientemente antipático para o leitor perceber que eu não estou endossando aquele discurso dele.
Há uns dois anos foi publicado um livro de um americano chamado Jon Ronson intitulado Humilhado, no qual o autor faz a aproximação dos "linchamentos de internet" com as punições puritanas em praça pública retratadas em A Letra Escarlate, de Hawthorne. O seu livro também parece aproximar o que acontece nas redes sociais e esse puritanismo original.
Sem dúvida. Eu li o livro do Jon Ronson, acho bastante bom. Como meu livro é ficção, tenho a possibilidade de me colocar no papel do protagonista e manejar a história para ser do jeito que eu quero. No caso do livro dele, que é uma grande reportagem muito boa, ele tem os limites do jornalismo. Mas uma coisa que o Ronson fala no livro e que eu concordo e acabei falando também no meu livro é que nessas grandes campanhas cívicas todo mundo sempre acha que está fazendo o bem. É essa a origem de movimentos condenatórios, ou do fascismo, ao contrário do que todo mundo acha, que os nazistas, por exemplo, estavam imbuídos de um ideal maligno, é um erro histórico de compreensão até perigoso, porque as coisas acabam se repetindo. Jamais alguém vai admitir para si mesmo que está fazendo algo deliberadamente ruim. Você tem hoje esses linchamentos de internet, e é curioso como as próprias pessoas que lincham são as primeiras a condenar outros linchamentos depois, porque elas não se sentem parte daquilo, elas enxergam só os outros como agentes de movimentos coletivos nefastos. Porque a pessoa dá um clique, compartilha uma página e faz parte da campanha achando que está fazendo algo bom. E com a tecnologia hoje é muito fácil fazer isso, você dá um clique sem refletir. Em relação a punições da época do livro A Letra Escarlate, a essência é a mesma, mas é diferente você pegar seu chapéu, sair de casa e ir para a praça ver a pessoa ser chicoteada ou humilhada, ou queimada. Havia um custo físico moral, você deveria estar lá, de certo modo, havia uma responsabilidade maior. Hoje não, você compartilha e esquece.
Você já participou de algo semelhante, compartilhou coisas ou até foi tomado pelo sentimento de satisfação em ver alguém se dando mal na rede?
O sentimento, com certeza sim, isso ninguém é isento. Mas acho, salvo engano, que não tomei parte em um linchamento pessoal de ninguém. Quando as redes sociais surgiram, ali nos anos 2000, eu já era jornalista há uma década, e está aí uma diferença. Eu já tinha uma certa prática da profissão de nunca escrever nada no Facebook ou no Twitter sem refletir minimamente, sem verificar a informação ao compartilhar uma notícia. Qual é a fonte? É confiável? Essas coisas mínimas que eu estava acostumado a fazer como jornalista me salvaram de muita bobagem. Eu tinha também uma noção da diferença entre a esfera privada e a pública. Posso ter cometido injustiças com corporações, critico o governo. Já postei uma coisa para os meus amigos contra o João Doria que quer passar centros culturais para organizações sociais. Depois fiquei pensando: organizações sérias existem em São Paulo, talvez ele não esteja só querendo entregar coisas para os amigos empresários. Eu já tinha mandado, não apaguei. Mas isso está dentro do esperado, ele é uma figura pública e eu critiquei sua atuação pública, não a vida pessoal. E é diferente de você ir atrás de uma pessoa qualquer que fala uma bobagem, como os retratados no livro do Ronson e como o protagonista do meu livro: uma pessoa mais ou menos comum, que não está concorrendo a cargo público.
Mas essa separação entre público e privado que você mencionou é encarada de modo diverso por você, na faixa dos 40, e por jovens que cresceram com a internet, alguns com as redes.
Sem dúvida. Por isso eu não prego meu procedimento para todo mundo. Alguém que está hoje nos 20 anos talvez considere absolutamente normal que em algum momento na sua vida será alvo de uma contenda de internet, nem que seja no colégio. Alguém de 20 anos hoje tem noções diferentes da minha do que seja um escândalo. Eu sou de uma geração anterior, alguém falando mal do seu trabalho, da sua aparência física, das coisas que você já disse, era uma coisa relativamente rara, então era normal que se reagisse pior a isso do que alguém que está desde os 10 anos de idade publicando coisas e recebendo respostas, até xingamentos. Eu mesmo, nas primeiras vezes em que escrevi em jornal e me xingaram, me senti muito diferente do que hoje, que eu já nem me preocupo em ler o que dizem. Talvez essa seja a normalização possível no futuro para esse estado de coisas que temos hoje no debate público. Talvez o otimismo possível seja que essa confusão vai ter se tornado tão constante que as pessoas vão perceber a diferença entre um comentário de portal e uma opinião séria em um veículo ou na página pessoal de alguém com credibilidade.
Com as redes sociais, nunca se viu tanta gente discutindo política. Mas também se vê o surgimento de figuras que exploram o cansaço com a política se vendendo como "de fora", como Trump nos EUA ou Doria e Crivella no Brasil. Como você vê esse fenômeno?
Tem os dois lados. Por um lado renova os quadros, porque os políticos brasileiros são, em geral, uma oligarquia decadente que precisa ser renovada. Por outro, como você renova esse sistema sem ceder aos que entram na política como aventureiros, como o Trump? Porque a lógica das redes sociais, e Trump é um pouco produto disso, é a da solução fácil. Todo mundo tem solução para tudo, e as soluções são sempre simples, é só cortar isso, pagar aquilo, parar de pagar juros da dívida, privatizar tudo. E se fosse fácil, outros países já teriam resolvido seus problemas. O Trump basicamente se elegeu oferecendo soluções simples para coisas mais complicadas do que parecem. Eu estava lendo um artigo esses tempos que dizia que a redução dos empregos nos EUA se deve mais à tecnologia do que à transferência de postos de trabalho para o Exterior, que foi a tecla em que Trump passou a campanha batendo. Se ele conseguisse manter fábricas lá, ainda estaria atacando só a menor parte do problema. Doria e Crivella talvez sejam parecidos. São pessoas de fora da política, o que poderia ser bom, mas representam visões equivocadas que aplicam lógicas à máquina pública que não são próprias dela. O Doria veio com a lógica de administração empresarial, que pode funcionar em uma empresa, em que ele é o dono, mas que é diferente quando se lida com um Estado democrático em que as coisas são determinadas por processos que têm de atender a quesitos de transparência. O Crivella é o mesmo com a lógica moral. Numa prefeitura que está com problemas financeiros para manter o básico, que é pagar funcionários e varrer ruas, ele entra com o fato de que acreditar em Deus vai ajudar. São fatores negativos dentro de algo que poderia ser positivo, que é a renovação de quadros.
A própria literatura se tornou um campo em que, especialmente nas redes, se luta para mudar focos de pressão. Leia mais mulheres, mais autores negros em feiras literárias. Ao fazer um romance com um narrador com preocupações de homem branco contra algumas dessas frentes identitárias você quis fazer alguma declaração?
Tem várias formas de responder. Uma é que acho que é uma provocação saudável, uma briga que me interessa comprar, a de que a literatura ainda é o espaço da liberdade. Independentemente de qualquer movimento, por mais espaço ou voz para grupos, todos legítimos. Apenas eu, como escritor, quero a liberdade de escrever o que quiser. Não acho mesmo que O Tribunal da Quinta-feira seja um livro politicamente incorreto. Pelo contrário, se dá para dizer que o livro prega alguma coisa é o lado da tolerância, o entendimento de que existem pessoas com formações diferentes, passados diferentes. Mas eu estaria disposto a defender até um escritor que pregasse o contrário. Acho que se há um espaço em que o mal pode existir, até como exorcismo, como teste moral das ideias, como catarse, é a arte em geral e a literatura em particular. Tivemos vários grandes artistas que foram pessoas horríveis. Na literatura mesmo, curiosamente 10 anos atrás nem se discutia a conveniência de se ter um Pound fascista, um Górki stalinista, um Céline antissemita. Pô, eu sou judeu, sei que ele era antissemita e adoro ler Céline. A literatura é um lugar em que essas ideias podem circular. Para mim, na minha formação humanista mais clássica, essa discussão estava encerrada, e hoje ela voltou. Então, quando falo de puritanismo também falo disso. Você acaba tendo dentro da literatura uma discussão sobre práxis, ortodoxia, sobre o que pode dizer ou não. Por mais bem-intencionada que seja, é uma ideia perigosa. Daí para a censura é um passo. Eu posso receber críticas, e até já recebi, sobre por que narro esse livro do ponto de vista de um homem, com a minha idade, branco, heterossexual etc. Se eu tivesse narrado do ponto de vista de uma mulher, de um homossexual, de um negro, eu receberia críticas também, até mais. Porque essa é a discussão contemporânea, a do lugar de fala, de que você não tem como tratar do assunto "x" por não saber como é. Acho interessante estar a par dessas discussões e sou capaz de defender a mesma coisa sob outros pontos de vista, mas como escritor, se for me guiar por isso, não teria direito de escrever nada. Acho que O Tribunal... é escrito de um ponto de vista mais machista e escroto do que o meu. Se as pessoas lerem o livro e fizerem uma discussão na qual sou o vilão, é um risco que corro. Mas no momento em que estou concebendo o livro, eu prezo minha liberdade. Já escrevi um bom número de livros, dificilmente não vou saber contar uma história dentro da luta que é escrever. O meu conflito hoje é outro, é vencer pudores, vencer a irrelevância da literatura, fazer as pessoas se importarem com aquilo.
Ao mesmo tempo, escritores vêm sendo "julgados" pelo que disseram em jornais, palestras ou entrevistas. Bernardo Carvalho disse num evento da Flip que queria que o leitor se fodesse. Cristóvão Tezza defendeu o impeachment. Sérgio Sant'Anna disse coisas duras sobre a nova literatura.
Essas coisas todas já aconteciam, mas hoje estão registradas e o autor tem a oportunidade de ver a reação em tempo real. Não vejo problema. Estou dando uma entrevista agora e pensando em voz alta, então posso falar uma frase errada. O que o Bernardo, por exemplo, falou, não está errado. Ele falou com a expressão que ocorreu na hora, mas eu diria a mesma coisa. Aliás, estou dizendo a mesma coisa. Claro que eu quero leitores, o maior número possível. Mas não vou abrir mão da minha liberdade como autor para agradar esse ou aquele leitor. Até porque sei que se abrir mão, o livro ficará pior. Prefiro estar na situação do Bernardo ou do Sérgio Sant'Anna, de ser discutido e até provocar polêmica, a ser um cara que fica postando coisas o dia inteiro e ninguém dá bola.