Embora traduções para o inglês de obras de Henrik Ibsen (1828–1906) estivessem disponíveis na virada para o século 20, James Joyce resolveu aprender norueguês apenas para poder ler o grande dramaturgo no original, tamanha era sua devoção. Quem não tiver a mesma dedicação de Joyce mas quiser entender a fascinação despertada por aquele que é considerado por alguns como o segundo mais influente autor de teatro (depois de Shakespeare) deve conferir a caixa que a editora Carambaia publicou no final de 2017 com quatro de suas mais importantes peças traduzidas do norueguês. Vem em boa hora: em 2018, celebram-se os 190 anos do nascimento de Ibsen.
Não é a primeira vez que Ibsen é vertido diretamente de sua língua materna ao português, mas muitos desses textos estão fora de catálogo ou foram feitos para encenações e acabaram não sendo editados. Coube a Leonardo Pinto Silva – que traduziu A Morte do Pai, do cultuado romancista contemporâneo Karl Ove Knausgård – a tarefa de criar novas versões de Espectros (1881), Um Inimigo do Povo (1882), Hedda Gabler (1890) e Solness, o Construtor (1892). A caixa tem edição caprichada: cada peça vem em um volume separado, e o posfácio de Aimar Labaki, que merece ser lido antes por contextualizar a biografia do autor e suas encenações no Brasil, é um opúsculo à parte, no formato dos programas distribuídos antes dos espetáculos.
Durante o trabalho, chamaram a atenção de Silva as lacunas existentes nas traduções – não apenas para o português – utilizadas para o cotejo, especialmente no que diz respeito às rubricas, como são chamadas as orientações de cena que indicam como a peça deve ser levada ao palco.
– Ibsen era muito cioso de seus escritos, ainda mais os da fase tardia, diante de mutilações e distorções cometidas por diretores, atores e, em especial, tradutores. No desafio que me impus, atrevi-me a dar um sabor machadiano ao texto, para localizá-lo no tempo e no espaço sem prejuízo à leitura de um brasileiro do século 21, mas procurei não recorrer a termos cuja datação no português brasileiro fosse posterior à data da peça – explica o tradutor.
Figura influente nas letras europeias no século 19, Ibsen é frequentemente citado como pai do teatro moderno. Filho de um próspero comerciante que perdeu toda a fortuna, o dramaturgo e poeta deixou a Noruega em 1864, retornando definitivamente apenas 27 anos depois. Morou em cidades como Roma, Dresden e Munique, mas suas histórias são ambientadas no país natal, onde é hoje uma espécie de herói nacional.
A Caixa Henrik Ibsen oferece exemplares de duas fases de sua produção: os dramas realistas contemporâneos (Espectros e Um Inimigo do Povo) e os dramas psicológicos e simbólicos (Hedda Gabler e Solness, o Construtor). Compreendem uma amostra representativa em qualidade de uma obra que soma 26 peças – também ficaram célebres Peer Gynt (1867), Casa de Bonecas (1879, que terá nova encenação e tradução para o português em 2018) e O Pato Selvagem (1884), entre outras.
Desafiando a moral da burguesia à qual o próprio Ibsen pertencia, suas peças questionam convenções sociais e enfrentam tabus. Seu teatro aponta as contradições das instituições: a família, o governo, a sociedade, a imprensa. Em Um Inimigo do Povo, Dr. Stockmann trava uma batalha individual ao revelar a contaminação de um balneário enquanto é acusado de comprometer, com sua denúncia, a principal atividade econômica da cidade. Ao defender o interesse coletivo, Stockmann torna-se um inimigo público devido a um jogo de manipulação dos poderosos. É do protagonista da peça uma das frases mais célebres escritas por Ibsen: “O homem mais forte do mundo também é o que mais está sozinho”.
Para ilustrar a atualidade do tema, Silva brinca que por vezes, durante a tradução, teve de se certificar de que a tela do computador exibia o texto da peça, e não um portal de notícias:
– Clássicos são assim, atemporais. Não há tema controverso que Ibsen já não tenha tratado em sua dramaturgia mais de um século atrás. Claro que havia uma comoção a cada estreia no Teatro Nacional de Oslo, e na peça subsequente o autor ousava ainda mais, respondendo aos críticos. Mesmo assim, era um debate longe da esterilidade pueril que temos hoje. Pensar que involuímos tanto depois de mais de cem anos não é nada alentador e só reforça a importância e a grandeza do dramaturgo norueguês.
CAIXA HENRIK IBSEN
De Henrik Ibsen
Inclui as peças Espectros, Um Inimigo do Povo, Hedda Gabler e Solness, o Construtor, além de posfácio de Aimar Labaki.
Tradução de Leonardo Pinto Silva. Editora Carambaia, 456 páginas, R$ 147,90.