Em Skien, cidade natal do dramaturgo norueguês Henrik Ibsen, a diretora teatral gaúcha Camila Bauer teve uma perspectiva diferente sobre o legado do autor que inspira seu próximo espetáculo, com previsão de estreia entre maio e junho de 2018. Ainda sem título, a montagem deriva do projeto Um Inimigo na Casa de Bonecas – A Voz Invisível e a Voz do Invisível, que foi um dos cinco vencedores das International Ibsen Scholarships, bolsas oferecidas pelo governo da Noruega para projetos de divulgação da obra do grande escritor daquele país. Camila e sua equipe contarão com o equivalente a R$ 120 mil.
Presenciando debates e assistindo a montagens de peças durante a Ibsen Conference, em outubro, a diretora percebeu que a obra dele, repleta de críticas à corrupção e aos descaminhos da sociedade, é talvez mais pertinente hoje ao contexto de países em desenvolvimento do que ao da própria terra natal – a Noruega ocupa o primeiro lugar no Índice de Desenvolvimento Humano da ONU. Não por acaso, também foram contemplados pelas Ibsen Scholarships projetos da Colômbia e da Índia, além de um da Grécia e outro binacional (Suécia/Noruega). Em Porto Alegre, onde já realiza ensaios para o novo espetáculo, Camila observa:
– Na Noruega, o feminicídio e a corrupção não são mais assuntos. Estão superados. Naquela semana de atividades, começamos a pensar sua obra sob outra perspectiva, tentando trazê-la ao contexto do Brasil. Por exemplo, relacionando-a com a quantidade de crimes cometidos contra as mulheres por aqui.
O trabalho que a diretora prepara será uma montagem de Casa de Bonecas (1879) com citações a Um Inimigo do Povo (1882), duas das mais conhecidas peças do autor. Dividindo opiniões entre os que a consideram uma forma de pré-feminismo e os que percebem nela apenas uma defesa da emancipação do ser humano, Casa de Bonecas mostra a trajetória de Nora, uma mulher que ao final decide abandonar o marido e os filhos. Pressionado pelas circunstâncias da época, Ibsen chegou a escrever, a contragosto, um final alternativo para ser encenado na Alemanha, no qual Nora decide ficar, mas ele mesmo considerou esse um ato de “violência” com a peça.
Baseado na versão original, Leonardo Pinto Silva realizou uma tradução do norueguês especialmente para a encenação gaúcha. Casa de Bonecas, que não consta na Caixa Henrik Ibsen lançada no final de 2017 pela editora Carambaia, será publicada em 2018 pela editora Moinhos, de Belo Horizonte.
Camila pretende não apenas preservar o tom contestador do texto como deve intensificá-lo. Estuda, por exemplo, um novo tratamento para Linde, personagem que opta por se enquadrar às convenções sociais esperadas para uma mulher. Seja para desconstruir o realismo de Ibsen, seja para contextualizar sua obra na atualidade brasileira, o espetáculo buscará um distanciamento crítico ao abrir o jogo teatral. Os atores interromperão a ação com comentários ou observações, explicitando que se trata de um elenco brasileiro representando uma peça ambientada na Noruega. Acontecimentos recentes, como o impeachment, serão aludidos.
A trilha sonora de Álvaro Rosa Costa, que também interpretará o papel de Dr. Rank, reforçará essa brasilidade, adaptando a referência à tarantela italiana no original. Nora será compartilhada entre as atrizes Sandra Dani e Janaina Pelizzon. Completam o elenco Nelson Diniz (como Torvald Helmer, marido de Nora), Lauro Ramalho (Krogstad), Liane Venturella (Linde) e a bailarina convidada Fabiane Severo. Carlota Albuquerque será responsável pela criação das partes coreográficas.