Li pela primeira algum texto de Antonio Candido em 1978, creio, na graduação de Letras na UFRGS. (Seu mais sólido leitor entre nós era Flávio Loureiro Chaves.) Candido já tinha imenso prestígio, mas não entre todos. Eram os anos ainda de hegemonia do estruturalismo, que no Brasil gerou muita espuma e pouca substância, e Candido praticava uma interpretação muito diversa daquelas setas e esquemas.
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Mas ele nunca foi ortodoxo em matéria de teoria. Segundo uma piada dele mesmo, era uns 60% marxista durante regimes autoritários, e no mais do tempo baixava para uns 20%, porque tentava pensar sobre o objeto literário conforme as sugestões que partiam do próprio texto - mas é claro que havia atrás disso sua perspectiva crítica, que era cosmopolita e aberta e tinha sido informada pelo curso de Ciências Sociais, sua formação acadêmica primeira.
Isso, ao lado de sua inteligência sutil e de seu texto competente e agradável, explica a novidade que trouxe ao debate literário: sem ter pago o pesado tributo da formação beletrista de sua geração de críticos, Candido tinha uma cabeça analítica na qual cintilavam conceitos, especialmente sociológicos, a partir dos quais ele trabalhou. Por exemplo: ao escrever sua Formação da Literatura Brasileira, em vez de perguntar, como era hábito, quando é que tinha começado a literatura brasileira, ele propôs pensar sobre como ela havia se formado - porque, sociólogo inteligente e leitor agudo, considerava que a literatura passa a existir não no momento em que é escrita, mas no momento em que circula, é lida, causa impressões.
Conheci-o pessoalmente em 1992. Era o governo de Olívio Dutra em Porto Alegre, Pilla Vares seu secretário de Cultura; trabalhava lá Flávio Azevedo, que me convidou para ajudar a pensar um evento sobre literatura, que Fernando Schuler ajudaria a botar de pé. Não tivemos dúvida: a primeira palestra deveria ser de Candido, que além de tudo era petista (como em sua juventude havia sido fundador do antigo PSB). Contactado, ele topou, muito porque queria mostrar sua alegria e simpatia por aquele experiência política que começava.
Numa sexta-feira à noite houve recepção a ele, e lá fui eu, com o coração alegre. Assim que deu jeito, sentei a seu lado e batemos um longo papo - ele, com a gentileza dos grandes, mais me perguntou do que falou. Contei a ele meu mestrado, dei detalhes, meio sem saber se fazia sentido eu estar ali falando diante do grande mestre.
A conferência, numa gloriosa manhã de sábado, foi um estrondo, "todo mundo" lá para conferir. (Eu o havia visto palestra em 88, no I Congresso da Associação Brasileira de Literatura Comparada, também em Porto Alegre, onde ele foi homenageado de honra.) Fala mansa, grande domínio da lógica da exposição, Candido era um professor professor, que gostava de falar mas, creio, mais ainda de fazer-se entender.
Com o tempo, escrevi sobre sua obra, que continuei lendo e apresentando aos meus alunos, tempos afora, até agora. Faz pouco, concluí um estudo grandote, meio metido, que quer pensar sobre história da literatura brasileira (e americana), e tem por uma das bases essenciais um conjunto de conceitos candidianos.
Encontrei-o mais algumas vezes, no Rio, em São Paulo e em Brasília, sempre em eventos acadêmicos. Uma vez, com colegas (dos gaúchos, meu colega e amigo Homero Araújo), fomos a sua casa. E lá a conversa foi ainda mais solta. Isso faz uns vinte anos, e nós, com a petulância de jovens, apresentamos a ele a ideia de escrever uma nova história da literatura brasileira. Essa pretensão já havia sido objeto de desdém, de ironia e de blague, especialmente (não me pergunte por quê) da parte de colegas da USP. O que Candido diria?
Ele foi genial: primeiro de tudo disse que claro, que era isso mesmo: nós, a nova geração, devíamos tomar a palavra para reavaliar a literatura brasileira. Era preciso pensar de novo qual o lugar de Castro Alves, de Alencar, de todo mundo. E acrescentou, pícaro, uma historinha inesquecível: nos perguntou se a gente tinha visto O Poderoso Chefão. Lembrávamos por acaso da cena em que Don Corleone chamava um capanga para perguntar se tinha como matar um certo desafeto? Ele mesmo lembrou que o capanga respondeu: "É difícil, mas não impossível". Aí Candido retomou a nossa ideia: "É bem assim o caso de escrever uma nova história: é difícil, mas não é impossível!"
Generosidade, coração do lado certo, grande capacidade intelectual, abertura para o novo. Antonio Candido ficará não como um pensador infalível, ou como quem não possa ser criticado, mas como um exemplo de intelectual dedicado e competente, autor de obra que continuará significando por muito tempo.