Uma das primeiras atividades realizadas na Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP), uma mesa só escritoras se tornou um fórum para discutir alguns dos problemas apontados na edição deste ano do evento. Em um encontro parte da programação paralela promovido pelo Itaú Cultural, que reuniu a escritoras Ana Maria Gonçalves, Andréa del Fuego, Conceição Evaristo e Maria Valéria Resende, com mediação da atriz e pesquisadora Roberta Estrela D'Alva, a tônica de muitas das declarações foi a ausência de autores negros – e autoras negras – na programação da festa.
A mesa começou com cada uma das autoras falando "de onde escreve", apresentando um pouco da história de cada uma. Ana Maria Gonçalves é autora do grande épico contemporâneo sobre a escravidão, Um defeito de cor, um calhamaço ficcional fruto de exaustiva pesquisa. Conceição Evaristo é escritora e poeta, nome de referência quando o assunto são escritoras negras, Maria Valéria Rezende, santista que há décadas vive em João Pessoa, ganhou o jabuti no ano passado por seu romance Quarenta dias, ambientado em Porto Alegre, e Andrea del Fuego é uma das autoras elogiadas da nova geração.
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Política desde o início, a mesa se tornou mais polêmica depois que um jornalista do O Globo perguntou a opinião das palestrantes sobre as recentes críticas à nominata de convidados da Flip, sem a presença de nenhum autor negro. Uma carta aberta divulgada por professoras da UFRJ esta semana criticou a organização e chamou a festa de "arraiá da branquidade". Conceição Evaristo, que assinou o manifesto, relatou ter recebido um e-mail de uma pessoa interessada em sugeri-la à organização em abril, mas que não recebeu mais nenhum contato.
– Até fico constrangida de contar isso, porque não estou fazendo minha propaganda, mas há muitos outros nomes que poderiam ter sido chamados.
Durante sua manifestação, Conceição Evaristo também respondeu à justificativa apresentada por Paulo Werneck, de que havia convidado insistentemente nomes como Mano Brown e Elza Soares, que não puderam comparecer.
– A nós, negros, costuma ser dada uma "cidadania lúdica". Com toda a deferência que se deve ter por Elza Soares, por sua história de vida, pelo fato de ela ser merecidamente reconhecida como uma das grandes vozes do Brasil, dar visibilidade ao negro como cantor ou esportista não é sair do lugar comum. Os negros também devem ser vistos, como escritores, intelectuais, pensadores. Se este fosse um festival do carnaval, as ruas estariam negras de gente negra.
Ana Maria Gonçalves tomou a palavra e reforçou que a Flip é sim um arraial da branquidade, mas não é algo específico do evento. De acordo com ela, não apenas na programação, mas na própria composição da plateia é possível ver um país muito mais branco do que seria de se esperar em um país da diversidade brasileira.
– A questão é que os brancos são a maioria não apenas no palco, mas na plateia. Porque também às vezes o próprio público negro não vê interesse nos personagens que são apresentados. Eu vim na Flip em 2006 para ver a Tony Morrison, porque ela era uma escritora que me fez sair da minha cidade e vir para cá assistir – complementou.
Freira e a mais velha autora na mesa, como ela mesma lembrou em tom de brincadeira várias vezes, Maria Valéria Rezende remeteu-se às raízes históricas da própria formação do Brasil.
– Você encontra em Vieira várias páginas se interrogando sobre a crueldade da escravidão, e ao longo da nossa história muito se refletiu sobre como um povo cristão poderia aceitar essa crueldade e ainda dormir tranquilo. Logo, há toda uma construção que justifica que alguns seres humanos naturalmente destinados a usufruir uma condição superior. E vice-versa.
A determinado momento, o próprio curador da Flip, Paulo Werneck, que estava presente assistindo ao evento, levantou, declarou que a Flip aceitava a crítica como relevante e que o evento pretendia dialogar para consertar questões como aquelas.
– Fizemos convites sinceros e persistentes, chegamos a aporrinhar mesmo algumas pessoas que não puderam comparecer. Então queria ouvir de vocês como tomar contato com essa bibliografia que vocês dominam – disse o curador.
– Pena que vocês não me aporrinharam – comentou Conceição Evaristo, provocando risos na plateia.
Werneck comentou que se a sugestão do nome de Evaristo e de outros autores chegou em abril, já não havia mais como fazer mudanças porque o processo de curadoria já estava fechado. Evaristo, então, disse que talvez aí estivesse o problema, na necessidade de ir buscar pessoas que tivessem conhecimento sobre os autores negros do Brasil já no momento da seleção.
– Você tem, na UFMG e na UFRJ, nos cursos de letras, centros acadêmicos que trabalham com autores afrodescendentes e com autores africanos contemporâneos. Talvez ter alguém na sua equipe de curadoria que tivesse acesso na recolha já dos nomes fosse uma alternativa.