Quando rinocerontes invadem uma cidadezinha, seus habitantes começam a sofrer estranhas mudanças comportamentais. Pode parecer absurdo de início, mas a montagem de um clássico texto do dramaturgo romeno Eugène Ionesco pela Cia. Teatrofídico é uma metáfora coerente do que o Brasil viveu nos últimos anos. Também se adequou ao perfil de um dos mais resistentes grupos teatrais de Porto Alegre.
O Rinoceronte estreou em 1959, quando o mundo ainda vivia os efeitos da Segunda Guerra. Na história de Ionesco, a cidade, cujos moradores são um pouco preconceituosos e racistas, fica em polvorosa ao se dar por conta que rinocerontes começam a se multiplicar. Ao longo da peça, descobre-se que não há uma invasão e, sim, que as pessoas é que começam a se transformar nesses animais agressivos.
Diretor da Cia. Teatrofídico e um dos fundadores do grupo, Eduardo Kraemer releu o texto de Ionesco no fim de 2020, ano em que o mundo vivia aflito com uma doença contagiosa e testemunhava uma nova ascensão de governos de extrema-direita. Ficou extasiado ao enxergar semelhanças entre passado e presente.
— Eu reli e disse: "Nossa, tem tudo a ver com o que estamos vivendo". O Ionesco tinha presenciado algo muito parecido com o nazismo. A peça é uma parábola sobre regimes totalitários. E a invasão da cidade é feita por animais poderosos e selvagens, impossíveis de serem domados e domesticados. Assim como é difícil lidar com o fascismo. É uma epidemia de "rinocerontite" que invade a cidade, que na verdade é a ascensão da extrema-direita. Caiu como uma luva, porque também vivemos isso nesses quatro anos malditos — desabafa Kraemer.
Livremente inspirada no texto original, Rhinocerontes estreia nesta segunda-feira (25) e segue em cartaz até 18 de outubro no Ocidente Bar, em Porto Alegre (veja detalhes ao final do texto). Na montagem da Cia. Teatrofídico, o resiliente Bérenger é interpretado por um ator negro, Alexandre Farias, e é alvo de seguidas manifestações de racismo ao longo da peça, o que dá um tempero atual à releitura do grupo.
Espetáculo passa por três ambientes do bar Ocidente
Versátil como costuma ser o teatro independente, o espetáculo é ambientado em três cenários, cada um deles ocupando um espaço do Ocidente. O primeiro é na rua, onde a cidadezinha começa a falar sobre a invasão dos mamíferos. O segundo leva o público ao mezanino, para assistir do alto às cenas em que uma empresa – não por coincidência chamada de Fake News Corporation – cria um burburinho sobre o que está acontecendo, até que um de seus funcionários também vira um rinoceronte.
No terceiro e último ato, a peça sobe ao terceiro andar, onde Bérenger e seu amigo Jean, vivido pelo ator João Petrillo, conduzem os espectadores ao clímax quando travam um diálogo existencial que termina com a transformação de um deles em rinoceronte, restando ao outro ser o único ser humano sobre a Terra. Também integram o elenco Renato del Campão, Diego Stefani, Pingo Alabarce, Juliana Strehlau e Bibi Dias.
— Com exceção do Bérenger, os personagens são uns monstros. São horríveis. E precisamos mostrar essa gente para lembrar que temos que cuidar para que não voltem. Vivemos um momento de esperança, mas o fantasma está aqui do lado — observa o diretor, ao ser questionado sobre a validade de fazer uma peça como essa em um momento de renovação política.
"Queremos falar de assuntos contundentes", afirma o diretor
Falar de um assunto tão espinhoso quanto ideologias está no cerne da Teatrofídico, que ao longo de duas décadas seguiu fazendo teatro por acreditar no ofício mesmo em condições adversas. Hospedado por 10 anos na Usina do Gasômetro, junto com outras companhias de teatro, o grupo está sem sede desde que um dos maiores e mais importantes espaços culturais de Porto Alegre foi fechado para reforma e ainda não reabriu.
A convite de Fiapo Barth, do Ocidente, a Teatrofídico passou a se apresentar exclusivamente no badalado espaço cultural, mas ainda não tem uma casa para chamar de sua. Os ensaios são feitos em locais cedidos por conhecidos.
A falta de incentivo às artes por parte dos governantes até pode ter feito os integrantes cambalearem por um momento, mas só até recuperarem o fôlego para seguir fazendo um tipo de arte destinada a arrancar uma gama de reações, muito além do riso fácil.
— Queremos falar de assuntos contundentes, provocar a plateia. Não queremos que a plateia fique acomodadinha, sentadinha, confortável, achando tudo lindo e maravilhoso. A arte é um reflexo do mundo. E o mundo não é maravilhoso. Podemos ser felizes e estar tudo bem, mas precisamos mostrar o que acontece no mundo. Então, queremos incomodar as pessoas — diz Kraemer.
Rhinocerontes
- Estreia nesta segunda-feira (25). Às segundas e quartas-feiras, sempre às 21h, até o dia 18 de outubro (exceto dia 11).
- Ocidente Bar (Av. Osvaldo Aranha, 960), em Porto Alegre.
- Ingressos a R$ 67,20 pelo site entreatosdivulga.com.br ou a R$ 80 no local.
- Capacidade máxima para 50 pessoas em cada sessão. Em caso de chuva, não haverá apresentação