Grace Gianoukas não nasceu pra ser Dercy. Pode até soar contraditório, pois é ela quem, sozinha, consegue encher o palco durante os 80 minutos de duração do primeiro espetáculo teatral dedicado a reverenciar o legado de Dercy Gonçalves (1905-2008), curiosamente batizado de Nasci pra Ser Dercy. A peça cumpre temporada no Theatro São Pedro (Praça Marechal Deodoro, s/nº), em Porto Alegre, nesta sexta (4) e sábado (5), às 20h, e no domingo (6), às 18h (veja detalhes sobre ingressos ao final do texto). E Grace garante que, nas três datas, tão logo as cortinas se abrirem, o público conhecerá a única pessoa neste mundo que nasceu pra ser Dercy:
— Dolores Gonçalves Costa! Uma mulher que lutou muito para ser Dercy, que só poderia ser feliz sendo Dercy.
É Dolores, a pessoa por trás da persona Dercy Gonçalves, quem protagoniza o espetáculo — embora não seja exatamente ela que o público vê em cena. O roteiro escrito por Kiko Rieser, que também assina a direção da peça, introduz aos espectadores a personagem Vera Finarelli, uma atriz de 50 e poucos anos que está prestes a realizar um teste para viver Dercy no cinema. E a chateação já começa aí: esperando encontrar o diretor responsável pelo filme, Vera entra no estúdio e encontra somente um aparelho que lhe passa as coordenadas do teste, funcionando como uma espécie de "diretor eletrônico".
Em cena, o controverso dispositivo é representado pela voz gravada de Miguel Falabella (e, para além da cena, serve como uma crítica de Rieser à desumanização da indústria cultural). Aliás, embora sintetize uma grande celebração à obra e à pessoa de Dercy Gonçalves, Nasci pra Ser Dercy é inteiro uma crítica, mas ao modo como a comediante costuma ser representada.
— Dercy Gonçalves revolucionou o teatro e a comédia brasileiros, mas sempre é lembrada como a velha louca que falava palavrão — pontua Grace. — Ela, ao lado de nomes como Oscarito e Grande Otelo, inventou e estabeleceu um estilo de humor legitimamente brasileiro, com um tempo cênico completamente diferente do que era feito até então. Se hoje a gente faz comédia do jeito que faz no Brasil, se a gente acha graça de determinadas coisas, a Dercy tem uma mão bem cheia de responsabilidade nisso — explica.
Nesse sentido, Nasci pra Ser Dercy faz justiça ao legado de Dercy Gonçalves e apresenta a artista pelo viés das suas contribuições e do seu pioneirismo. O passeio pela vida e pela obra da homenageada se dá por mais um aborrecimento da personagem Vera Finarelli: já irritada com o "diretor eletrônico" que comanda seu teste para o papel, a atriz perde as estribeiras ao ler o roteiro do fictício filme sobre Dercy Gonçalves e perceber que a artista será retratada na produção de maneira reducionista e estereotipada. Revoltada, ela resolve ignorar o texto e começa a interpretar Dercy da forma como acredita ser a correta.
No palco, o que se vê é a atriz Grace Gianoukas interpretar a atriz Vera Finarelli enquanto esta interpreta Dercy Gonçalves — que não deixa de ser a personagem da também atriz Dolores Gonçalves Costa. Na plateia, o que se sente é um misto de dor abdominal e lágrimas nos olhos. A dor é proveniente das gargalhadas que o texto de Rieser promete, enquanto as lágrimas são instigadas pela dura história de vida de Dolores, recontada no espetáculo desde os tempos em que ela vivia na pequena Santa Maria Madalena, no interior do Rio de Janeiro, muito antes do estrelato como Dercy Gonçalves.
— Dolores foi praticamente expulsa de Madalena. Ela não era convidada para absolutamente nenhum evento da cidade, não tinha nenhuma amiga e ninguém queria andar com ela — explica Grace. — Ela era uma menina brilhante, inteligente, criativa, à frente do seu tempo, e não cabia naquela cidadezinha de gente ignorante e preconceituosa onde nasceu. Eu me identifiquei muito com ela nesse aspecto de não se sentir compreendida e partir em busca do seu lugar no mundo. A diferença é que eu pude contar com o apoio de uma família que sempre me incentivou a ser quem eu sou, enquanto ela não teve esse privilégio — acrescenta a atriz, que é natural de Rio Grande, no sul do Rio Grande do Sul, mas vive no sudeste do país há algumas décadas.
Grace conta que descobriu outras semelhanças entre ela e sua homenageada, tanto artísticas quanto pessoais. Uma delas é a defesa dos direitos das mulheres, bandeira que a gaúcha sempre levantou e que Dercy, ainda que sem muita consciência da importância do que estava fazendo, também levantava.
— À medida que fui mergulhando na vida da Dercy, eu vi o quanto ela, sem se dizer feminista e sem entender o que era o feminismo, lutou pelo lugar das mulheres dentro da sociedade. Eu acho que nós precisamos saber quem veio antes de nós, pois a nossa luta é como uma corrida de bastão: quando uma não está mais aguentando, passa para a outra. A Dercy correu muito com esse bastão na mão antes de passá-lo para nós — diz Grace.
Todas as descobertas da atriz a respeito de Dercy são fruto da sua dedicação à composição da personagem. Desde que aceitou o papel, a gaúcha se uniu ao diretor em mergulhos profundos pela história da artista. Talvez fosse mais fácil somente assistir a alguns vídeos de Dercy para aprender a copiar seus trejeitos, mas Grace é uma atriz, não uma imitadora.
— Não sei fazer isso, não sou capaz de imitar ninguém. Tem artistas que possuem tal capacidade, conseguem até mudar a voz, mas eu não, eu sou uma atriz de interpretação — diz ela.
Avessa ao mesmo processo de desumanização que é criticado no texto do espetáculo, ela entrega toda a bagagem acumulada em seus mais de 40 anos de carreira para interpretar Dercy Gonçalves. E, ao fazer isso, quase enverga o assoalho do palco com o peso de sua humanidade.
Nasci pra Ser Dercy
- Nesta sexta (4) e no sábado (5), às 20h, e domingo (6), às 18h, no Theatro São Pedro (Praça Marechal Deodoro, s/nº)
- Ingressos a partir de R$ 50, no site do São Pedro
- Desconto de 50% para sócios do Clube do Assinante