Com quase 50 anos dedicados ao teatro, Luciano Alabarse é criterioso para escolher quais espetáculos vai comandar. Porém, assumiu a direção de Gabinete de Curiosidades sem sequer ler o texto. Mas, sim, o critério estava lá. E rigoroso. Ao ver que os ícones dos palcos gaúchos Arlete Cunha e Zé Adão Barbosa protagonizariam a peça, não pensou duas vezes. Aceitou de pronto o convite.
Alabarse, em sua visão, acertou em cheio ao embarcar na empreitada: o espetáculo é uma grande homenagem a alguns dos maiores dramaturgos da história, o que conversa totalmente com a paixão do diretor. E o responsável por desenvolver o material tão especial foi o médico e escritor gaúcho Gilberto Schwartsmann, que estreia a sua primeira obra como dramaturgo, fazendo "uma declaração de amor ao teatro", como ele próprio diz.
Gabinete de Curiosidades, que terá três sessões no Theatro São Pedro, desta quinta (28) a sábado (30), sempre às 21h, foi escrita na intenção de abordar o preço da ignorância e mostrar que uma sociedade que não valoriza a cultura tem mais risco de ser manipulada por indivíduos sem virtudes — por mais que tenha similaridades com o presente, ela se passa em 2040. Quando Alabarse se viu diante destas questões, a empatia foi imediata e sabia que a sua direção, trabalhando com o inspirado texto, poderia explorar ainda mais este universo.
— É um espetáculo muito sentimental, afetivo e amoroso. É muito prazeroso fazer uma peça em que a gente homenageia e reverencia os nossos ídolos, mestres e referências. E, ao mesmo tempo, não é algo erudito, hermético. É bastante acessível. Não é um espetáculo somente para iniciados. Pelo contrário, quem não conhece deve ir, porque vai entender um pouco por que se ama tanto o teatro — destaca Alabarse.
Otimismo e pessimismo
Em Gabinete de Curiosidades, Zé Adão Barbosa interpreta Oneirópolos, enquanto Arlete Cunha dá vida a Disoíonos. Os nomes, em grego, significam "otimista" e "pessimista", respectivamente. Enquanto isso, Fernando Zugno faz uma participação especial. Na trama, que se passa daqui a 18 anos, os dois protagonistas se encontram em um antigo asilo, em Corrúpnia, um país imaginário cheio de contradições, injustiças, desrespeito e desigualdade. Nesta realidade, a cultura e a arte são tratadas com desdém pelas autoridades e pela maior parte da elite econômica. Assim, para receber apoio financeiro a iniciativas artísticas, o setor deve literalmente implorar de joelhos por algum milagre que sobre do orçamento do governo.
— É um texto muito especial, porque retrata duas realidades que se juntam ali — conta o diretor. – A primeira, de uma velhice desassistida, abandonada. No caso, dois velhos artistas que, depois de trabalharem toda a vida, terem muitos sucessos, capas de revista, artigos de jornal, não têm recursos para se manter e são jogados pelos familiares em um asilo público. E isso é uma realidade tristíssima, atual. A segunda é justamente a profissão destes dois velhos, que foram grandes artistas de teatro. O jeito que eles têm de lidar com esta realidade tão avessa é por meio da arte, da sua história, inventando jogos cênicos.
Zé Adão explica que tanto o seu personagem quanto o de Arlete chegam ao fim da vida tendo que fazer "performances" para os visitantes de um gabinete de curiosidades – uma espécie de ancestral dos museus — e destaca que este é um fato comum no meio artístico, com grandes nomes do teatro e do cinema que morreram pobres e esquecidos:
— Nosso ofício tem isso: o glamour do sucesso e o terror do fracasso. Mas Oneirópolos e Disoíonos representam aqueles artistas apaixonados que lutam desesperadamente para jamais abandonar o palco. Gilberto Schwartsmann capta perfeitamente o universo de quem vive de arte num país como o Brasil. É uma luta diária para que a arte sobreviva. Apesar dos pesares, esta pandemia comprovou o que todos sabemos: a arte salva! Sem arte, o homem murcha, se apequena, morre.
Já Arlete explica que Disoíonos atua como contraponto ao amigo Oneirópolos, com ele sendo um otimista que cria situações para que a vida possa fluir com mais dinamismo dentro do ambiente claustrofóbico em que eles vivem. Ela, então, é mais resistente e desiludida com a realidade. Porém, depois de uma inicial oposição, embarca com criatividade e energia nas proposições do amigo e parceiro de vida e arte. E, assim, eles se completam e levam a vida adiante. Diz a atriz:
— Esses dois trabalhadores da cultura demonstram que, por meio da arte, a vida pode ser ressignificada, mesmo quando tudo parece sem sentido e sem propósito. A realidade que apresentamos não é muito promissora, pois os dois velhos estão reclusos num asilo e percebe-se que as forças políticas continuam não valorizando a cultura e a educação. Eles resistem porque acreditam fortemente no ofício ao qual dedicaram as suas vidas.
Alabarse, além de dirigir, ainda é responsável pela trilha sonora e pelo cenário do espetáculo, desafios que ele mesmo se deu, pois acredita que, ao trabalhar também nestas áreas, consegue criar uma imersão maior em sua apresentação. Para esta estreia, ele mostrará o seu talento nos demais ofícios, incluindo uma cena com metalinguagem referente ao Theatro São Pedro — porém, ele pediu para não dar spoilers. Ou seja, para ver esta surpresa, é preciso estar lá.
Com energia de sobra, Alabarse vibra com a sua nova empreitada — que vem logo em seguida de O Inverno do Nosso Descontentamento – Nosso Ricardo III, que estreou no início deste ano — e, ao ser questionado sobre as preparações para a comemoração do seu meio século de carreira, a ser completado em 2024, ele responde:
— Por enquanto, só penso em Gabinete de Curiosidades. O futuro é agora.
Gabinete de Curiosidades
- Desta quinta (28) a sábado (30), sempre às 21h.
- Theatro São Pedro (Praça Marechal Deodoro, s/n°, Centro Histórico), em Porto Alegre.
- Ingressos: a partir de R$ 10, à venda no site Sympla (com taxa) e na bilheteria do teatro (sem taxa).
- Após a sessão de sexta-feira (29), haverá debate sobre o espetáculo em uma parceria com a Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre (SPPA). Estarão presentes Cláudio Laks Eizirik, Luciano Alabarse e Gilberto Schwartsmann.