Pulsação é a ação de dilatar-se e contrair-se ritmicamente. No dicionário, a fonte geradora não é especificada, porque muitos podem ser os ritmos capazes de promover um pulso. No caso dos 16 bailarinos da Cadica Cia. de Dança que sobem ao palco do Theatro São Pedro nesta terça-feira (31), às 21h, em Porto Alegre, ele vem de gestos flamenco-gaúchos como o golpear do bombo leguero, a madeira das castanholas se tocando, as mãos que se encontram em palma e os pés que se fincam no chão, demarcando o sapateado.
São esses os quatro maestros responsáveis por reger a orquestra de corpos que agora reapresenta o espetáculo Pulsar - O Som que Toca a Alma, cuja turnê foi interrompida em 2020, em razão da pandemia, e a reestreia marcada para a semana passada foi cancelada por conta da tempestade Yakecan. Mesclando danças e músicas típicas das culturas flamenca e gaúcha, fusão que é a marca registrada do grupo fundado pela alegretense Cadica Costa, o trabalho propõe um resgate dos ritmos que fizeram pulsar os bailarinos da companhia ao longo dos seus quase 30 anos de existência.
Mas a ideia pulsou primeiro em Emily Borghetti. Filha de Cadica com o músico Renato Borghetti e dançarina de flamenco desde quando estava na barriga — Cadica começou a praticar o ritmo espanhol ainda grávida de Emily —, ela assumiu a direção da companhia no lugar da mãe, que segue no comando da escola de danças homônima.
— Quando comecei a dirigir, pensei que tinha que fazer um espetáculo que reforçasse o que a companhia tem de mais marcante e potente. Fiz uma confraternização com os bailarinos na minha casa e pedi que cada um falasse o que mais lhe fazia pulsar na companhia. Foi uma surpresa, porque todo mundo falou meio que a mesma coisa: o ritmo do bombo leguero, das palmas, do sapateado... — lembra Emily, que encara a montagem também como uma homenagem à trajetória construída pela matriarca.
Pulsar representa, então, a passagem de bastão de Cadica para Emily. E não só pela troca de cargos ou pelos solos que mãe e filha realizam no espetáculo, mas pela simbologia envolvida no seu processo de concepção: assim como Cadica deu seus primeiros toques de castanhola gestando Emily, esta também planejou o trabalho que marca a nova fase da companhia enquanto estava grávida da filha Serena — curiosidade que emociona sobretudo a avó.
— O espetáculo foi todo ideia da Emily, e ela traz, naturalmente, muito das ideias que eu também compartilho. Isso é muito bonito de perceber. Antigamente, eu pensava: "Imagina que lindo se um dia um filho meu dançar comigo". E hoje todos eles dançam (além de Emily e Nina, que estão na companhia, Cátia e Pedro também são bailarinos). É algo que me emociona — comenta Cadica, com a voz embargada.
Entre as ideias compartilhadas por mãe e filha, está o entendimento que ambas têm da fusão entre os ritmos flamencos e gaúchos presentes na montagem. Para elas, as duas culturas têm semelhanças e se complementam, de forma que é possível tirar o que há de melhor em cada uma delas para compor uma dança que é única, ancestral e ao mesmo tempo moderna.
Por exemplo, ao desconstruir a dualidade homem-mulher que marca as danças gaúchas de salão e trazer a equidade de gênero presente no flamenco para os tablados do Sul. Assim, mãe e filha seguem criando a dança que lhes faz pulsar. Emily, agora, e Cadica, lá no início dos anos 1990, quando decidiu fundar uma companhia onde pudesse sapatear.
— Eu era professora de danças gaúchas e me apaixonei pelo sapateado. Mas só o homem sapateava. Eu aprendi somente para ensinar os meninos, mas a verdade é que eu também queria sapatear. Aí, conhecendo o flamenco, onde a mulher também sapateava, eu me encantei. É uma dança que traz a mulher com a mesma força do homem, que traz uma mulher que vai à luta e que fala por meio dos pés — lembra a fundadora, que tem ainda o balé como base de sua formação.
Essa igualdade de forças adotada pela companhia como DNA é expressa em diversos números do espetáculo. Há o solo de um bailarino que dança com uma saia comprida, pares formados por duas mulheres e dois homens e solos masculinos e femininos que contornam a premissa de que só o homem pode dançar sozinho, como ocorre na chula gaúcha.
Mas apesar da configuração subversiva, Emily não considera este um espetáculo crítico ou político, como outros de que ela também participa em projetos paralelos (o musical Líricas Sulinas, por exemplo, que apresenta ao lado de Ana Matielo, Clarissa Ferreira, Nina Fola e Tamiris Duarte). Para ela, é bom que as pessoas saiam de Pulsar com novas ideias sobre a cultura gaúcha pulsando, mas o objetivo é menos pretensioso: tanto ela quanto os demais bailarinos só desejam mostrar ao público qual é a dança que eles querem dançar.
— Tenho a impressão de que estamos fazendo aquilo que queremos que exista, sabe? Mostrando o que a gente quer dançar e como a gente quer dançar. Não estamos dançando conforme um manual, algo que é muito comum nas danças gauchescas, por exemplo. Nosso trabalho é autoral, baseado nas coisas com as quais a gente se identifica e que fazem sentido para nós — destaca.
Emily deve seguir à frente da companhia, mostrando cada vez mais a dança que faz sentido para ela. O projeto, explica, é levar Pulsar para outras cidades gaúchas e retomar a turnê pelo Uruguai planejada para 2020 e cancelada quando irrompeu a pandemia.
Já Cadica permanece no comando da instituição de ensino e investindo em outra paixão: a dança como modalidade terapêutica, que ela oferece na escola por meio dos programas Transfordance, Reinvente-se no Agora e Desabrochar Feminino, cada um com suas particularidades metodológicas.
Juntas, mãe e filha estão já trabalhando no espetáculo alusivo aos 30 anos da Cadica Cia. de Dança, celebrados no ano que vem. A ideia, ainda em fase inicial, é que a futura montagem resgate a história do grupo e reúna no palco grandes nomes que passaram pela companhia. E, é claro, que também faça pulsar.
Pulsar - O Som que Toca a Alma
- Nesta terça-feira (31), às 21h, no Theatro São Pedro (Praça Marechal Deodoro, s/nº), em Porto Alegre.
- Ingressos a partir de R$ 30, disponíveis na plataforma Sympla.