O ano de 1952 foi importante para o legado de Lima Barreto (1881-1922). Lançada na época, a biografia escrita por Francisco de Assis Barbosa ajudou a resgatá-lo do esquecimento. Interesse renovado também houve em 2017, quando o autor de Triste Fim de Policarpo Quaresma e Recordações do Escrivão Isaías Caminha foi homenageado na Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) e ganhou nova biografia, escrita por Lilia Moritz Schwarcz.
Naquele ano, em meio às celebrações, estreou a peça Traga-me a Cabeça de Lima Barreto, da Cia. dos Comuns (RJ). Com texto de Luiz Marfuz e direção de Fernanda Júlia, o solo do ator Hilton Cobra imagina uma autópsia no escritor — que era negro e escreveu criticamente sobre o racismo —, realizada em um congresso de eugenia, no qual seus participantes tentam entender como um cérebro considerado por eles como inferior conseguiu criar uma obra tão brilhante.
Apresentada em Porto Alegre no ano passado, no Theatro São Pedro, a montagem retorna nesta terça-feira (7/5), às 19h, no Teatro do Sesc Centro (Av. Alberto Bins, 665), dentro do 14º Festival Palco Giratório Sesc/POA. É um dos trabalhos em cartaz na programação que encenam as questões da representatividade e da negritude, a exemplo de Elza (dias 10 e 11 no Theatro São Pedro), musical sobre Elza Soares; Navalha na Carne Negra (dias 18 e 19 na Sala Álvaro Moreyra) e Isto É um Negro? (dias 23 e 24 na Sala Álvaro Moreyra).
Traga-me a Cabeça... é baseada principalmente no Diário Íntimo e em Cemitério dos Vivos, mas faz alusão a outras obras de Lima Barreto, como Clara dos Anjos, Policarpo Quaresma e Isaías Caminha. Hilton Cobra, que estava afastado do teatro desde que havia participado de uma adaptação teatral de Policarpo Quaresma, em 2008, comemorou seus 40 anos de carreira representando o próprio Lima Barreto na nova peça.
— Não gosto de encarnar os personagens, para mim essa não é a questão — explica o ator. — Estou com meu corpo aqui e com o personagem ao lado, fico fazendo essa brincadeira. Mas o Lima está ali, presente. Minha postura é de generosidade com o personagem, deixando-o chegar e falar. O Lima é extraordinário.
Embora a situação motivadora da peça — a autópsia do autor — seja ficcional, a realidade debatida em cena diz respeito à realidade brasileira. Em 1929, houve de fato um Congresso Brasileiro de Eugenia, realizado na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro.
A esse respeito, Cobra identifica um paralelo com a atualidade que não estava presente na ocasião da criação da peça:
— Não imaginava que veríamos uma ultradireita tomando o poder no Brasil. Os eugenistas estão de volta, estão colocando-a em prática. Por isso, o texto da peça é absolutamente atual hoje. Quem assistir perceberá isso.
Ressentimento com Machado de Assis
O ator guarda uma lembrança carinhosa da sessão do espetáculo em Porto Alegre em 2018, na abertura da 11ª FestiPoa Literária:
— Foi maravilhoso, lotamos o São Pedro. Foi uma das melhores apresentações que fizemos. Eu me descobri uma pessoa negra a partir de uma mulher gaúcha extraordinária, a Luiza Bairros (ex-ministra da Igualdade Racial, morta em 2016). Então, para mim, teve uma carga emotiva muito grande. Gosto de levar para a cena essas referências.
Traga-me a Cabeça... retorna à Capital em um momento de debate sobre a negritude de outro grande escritor brasileiro. Recentemente, uma campanha da Faculdade Zumbi dos Palmares, em São Paulo, em parceria com a agência de publicidade Grey, divulgou uma foto de Machado de Assis que desfaz o efeito de clareamento que sua imagem sofreu ao longo da história.
Machado é justamente assunto de um próximo projeto de Cobra, que planeja um solo a partir de Memórias Póstumas de Brás Cubas. A ideia é enegrecer Machado, ou seja, ressaltar a identidade que foi ofuscada. Diz o ator:
– Tem uma parte de Traga-me a Cabeça... que mostra o ressentimento de Lima com Machado. Ele questionava por que Machado se sobressaía, e ele não. Por duas vezes, Lima tentou entrar na Academia Brasileira de Letras, e não foi reconhecido. Machado foi mais aceito porque fazia concessões. O que temos de buscar para a memória é sua negritude.
TRAGA-ME A CABEÇA DE LIMA BARRETO
Nesta terça-feira (7), às 19h.
Teatro do Sesc Centro (Av. Alberto Bins, 665), em Porto Alegre.
Ingressos: R$ 15 (Cartão Sesc/Senac, estudantes, classe artística e maiores de 60 anos) e R$ 30 (público geral). À venda no site sesc-rs.com.br/ingressos e na bilheteria do local.