Antropóloga e historiadora, Lilia Moritz Schwarcz pesquisou ao longo de 10 anos a vida de Lima Barreto. A biografiaLima Barreto: Triste Visionárioé um amplo apanhado dos tempos que formaram o autor, da vasta gama de textos publicados por ele em sua curta vida e das impressões deixadas por ele em seus contemporâneos – muitos deles também seus desafetos, dada a contundência com que ele atacou muitas da estruturas de seu tempo – um tempo que a autora também já abordou em As Barbas do Imperador, sobre o reinado de Dom Pedro II:
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Ainda é possível encontrar quem discuta o papel de Lima Barreto no "cânone literário". A que a senhora atribui essa prevenção?
Primeiro teremos que perguntar o que é esse cânone e quem detém a régua e o compasso. Não existe essa racionalidade, e o Lima é autor de uma obra muito vasta. Penso que ele foi sofrendo vários impedimentos durante a vida e depois. Impedimentos que digo são quase censuras. Ele tinha um projeto literário e lutou por ele. Parte desse projeto passava pela ideia de provocar. Por exemplo, o primeiro livro do Lima Barreto, Recordações do Escrivão Isaías Caminha. A primeira parte é uma beleza, uma crítica ao racismo de uma contundência impressionante. A segunda parte é um roman à clef, um ataque ao jornalismo da época, aos seus "colegas de redação", por assim dizer. E antes da publicação integral do romance, o Lima veiculou alguns trechos na revista Floreal, e já de saída sofreu um veto por parte dos jornalistas e não recebeu as resenhas que queria. No segundo livro, Numa e a Ninfa, ele bate em quem? Nos políticos. E também nos funcionários públicos, mesmo sendo um deles.
Um projeto de ataque contra as incongruências e hipocrisias um romance por vez?
Essa é a minha interpretação. E ele foi construindo isso . Depois ele vai participar do julgamento dos militares que atuaram violentamente contra os estudantes que faziam uma palestra pacífica contra o Hermes da Fonseca. O júri vota contra os militares e ele sofre um veto no seu trabalho. Como funcionário público , ele não tem mais promoções. E daí se você pegar o Policarpo Quaresma, é um ataque feroz ao Florianismo, ao jacobinismo muito popular na Primeira República. Vai sair de novo agora um volume chamado Impressões de Leitura, organizado pelo Francisco de Assis Barbosa e que a Beatriz Resende está reorganizando. E é impressionante o papel dele como crítico literário, e como ele é generoso em receber novos escritores. Mas sempre de um jeito ácido. Ele era de um estilo "bate e assopra".
O embate de Lima Barreto contra os modernistas de São Paulo também é apontado em seu livro como parte da longa "queda em desgraça" de Lima imediatamente após sua morte.
Ele tem uma divergência com o pessoal da Klaxon que vai repercutir não tanto com o grupo de 1922, mas com o que se estabilizou depois. O Lima recebe a Klaxon do Sérgio Buarque de Holanda, que então era um jovem dândi, muito cioso de si. E o Lima escreve uma carta debochada caceteando a revista. O pessoal da Klaxon escreveu uma réplica muito forte, o desautorizando. No período posterior, os modernistas paulistanos, com sua régua e compasso, vão colocar o Lima no balaio do que se chamava "pré-Modernismo". Ora, "pré” é quase categoria de acusação: você não foi e também não será. O próprio Sérgio Buarque de Holanda faz uma crítica ao Clara dos Anjos, que eu reproduzo no livro, usando um argumento que se usaria demais: que o Lima Barreto não tinha imaginação, que fazia literatura militante e colada demais à própria vida. Ora, o que pensar desse argumento hoje, com a autoficção de [Karl Ove] Knausgard, [J.M.] Coetzee, só para usar alguns exemplos? O Lima tinha um arrojo muito moderno: usava a linguagem do povo, era contra academicismos, o que foi outro ponto de veto a ele.
Lima e Machado, dois dos maiores autores nacionais, dois negros, foram assumindo o caráter de "figuras políticas". Para alguns, Machado era o "modelo de excelência" que Lima nunca foi. Para outros, Lima bateu com mais coragem na questão da escravidão, que Machado teria escamoteado. Como a senhora vê essa questão?
Quando você passa 10 anos pesquisando Lima, as pessoas acham que você é automaticamente uma antagonista de Machado. Essa é uma atitude dicotômica, empobrecedora, na minha opinião. Ambos tinham origens semelhantes, ou seja, eram descendentes de escravizados e nasceram de pais livres, o que fazia imensa diferença no Brasil no final do Império e no começo da República. Depois as coisas não andariam bem, mas no princípio o Lima teve uma família que hoje chamaríamos de até mais "estruturada" que a do Machado. O pai era tipógrafo, a mãe era professora. A acusação que se faz de que o Machado ignorou a escravidão também não é fato. Então, esse tipo de oposição não me interessa. O que me interessa é que eles tinham projetos literários diferentes. O Machado de fato visava a outro tipo de literatura. O Lima tinha em vista algo que ele mesmo chamava de "realista", vinculado ao seu momento, militante e, mais para a frente, anarquista.
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Ainda assim, a relação do próprio Lima com Machado era ambivalente. O que causou essa separação?
Primeiro, a geração. Lima começa a escrever no momento em que Machado publica sua última grande obra. Veja como ele está ensanduichado: começa no ocaso do Machado e morre em 1922, então aí se tem uma pista de como se foi construindo para ele essa ideia de "entre". Ele é o não Machado e o não Modernismo. E na época Machado se torna o modelo de escritor bem estabelecido, o símbolo da Academia. É por isso que falo da geração como um marcador de diferença. Para Lima e os de sua geração, que queriam arranjar seu lugar ao sol na "República das Letras", era preciso atacar o establishment. Quem era o establishment? A Academia. Quem simbolizava a Academia? Machado. Claro, eles também viviam em circuitos diferentes. As confeitarias e livrarias que o Machado ia eram completamente outras que os cafés e botequins do Lima. Machado era incontornável para esses autores, tanto que Lima o lia. Mas se os mais novos queriam formar uma identidade de grupo, precisavam atacá-lo. E o Lima ataca mais o Machado institucional, o da ABL. E não chega a atacá-lo tanto quanto ataca o Coelho Neto, de quem ele dizia que tinha o projeto de "colocar colunas árcades em nossos parques tropicais".
Não deixa de ser exótico pensar que os adversários Lima são os mesmos do Modernismo. A disputa entre Lima e os modernistas é um conflito de semelhantes mais do que de opostos?
Os projetos eram muito comuns. Tinham inimigos muito semelhantes: a Academia, o Parnasianismo, a escrita formal, o bom-mocismo da literatura, ou, como o Lima descrevia, uma "literatura de toilette" feita por "escritores perobas". O projeto de Lima e dos de sua geração poderia ter sido incorporado pelo Modernismo se o Modernismo não tivesse construído essa cerca tão estrita.
Mas Machado e Lima, nessa dicotomia, deixaram de ser apenas dois escritores para se tornar emblemas políticos de um certo tipo de inserção ou de luta contra o racismo na sociedade, não?
O Lima tinha um projeto literário que era considerado pelos seus contemporâneos "desagradável". Machado era autor de ótima literatura, mas que não questionava a nacionalidade o tempo todo. Lima era um autor que atacava a República sem dó nem piedade. Há vários trechos dele que são de uma atualidade impressionante. Na questão racial, ele pega um plano que fazia parte dos fundos, do segundo plano, dos bastidores e o transforma numa questão central. Por isso eu tento provar o quanto o Lima fazia uma literatura negra não só por causa de sua origem, porque o Machado é um exemplo que a origem não era o suficiente, sabemos muito bem como o Brasil manipula as cores como questão social. O Lima, no alto dos anos 1910, dialoga com a ideia do africanismo. Ele tem uma percepção dos subúrbios impressionante, quando descreve o sujeito que faz parte da "aristocracia do subúrbio", e chega no centro e vira ninguém. Também nos pequenos personagens. Ou nos grandes como Clara dos Anjos, que dialoga com dados que a Unicef acabou de lançar agora sobre quantas mulheres são estupradas no Brasil, assediadas, e como a maioria delas é negra. E o jeito que o Lima falava diretamente dessas coisas, de como a capacidade dos negros era discutida a priori, e a dos brancos a posteriori, ou quando ele diz que recebeu um cartão com macacos. Ele traz questões que até hoje são consideradas "desagradáveis". Quem lida com esse tema até hoje recebe uma série de críticas, como se estivéssemos "inventando" o racismo no Brasil. Então imagina o que era falar disso numa época em que muitos, como o Coelho Neto, que o Lima cita textualmente, ou mesmo o Afrânio Peixoto, fazem uma literatura adocicada, sem problemas, e você tem esse cara que ataca todo mundo.
A respeito da questão racial, a senhora hoje se manifesta a favor das cotas. Mas um manifesto de intelectuais contra as cotas, datado de 2006 e publicado no jornal Folha de S. Paulo apresenta sua assinatura. A senhora mudou de opinião?
O primeiro texto daquele manifesto, que foi o que eu li e assinei, não era contra as cotas. Estava se discutindo na época um estatuto da igualdade racial, e esse estatuto era o que eu dizia que não estava bem elaborado ainda. Então eu li um texto, assinei e apareci em outro. Mas na época eu já trabalhava no Inclusp, o grupo que se formou na USP para discutir inclusão social na universidade. E acho que daquele momento para agora eu radicalizei a minha posição e me orgulho disso, me orgulho por, desde esse incidente, batalhar abertamente por cotas na minha universidade e em todos os lugares que eu falo.