Celina Alcântara ainda se lembra do primeiro texto teatral que memorizou na vida: Aparição (1959), do escritor português Vergílio Ferreira (1916-1996), na sexta série do colégio. Não era propriamente uma peça, mas um trecho de romance que seu grupo na sala de aula foi designado a apresentar pela professora de Literatura. No que viria a ser sua primeira experiência na área, sugeriu aos colegas encená-lo.
De vez em quando ela ainda emprega aquele texto em exercícios, agora profissionalmente. Aos 49 anos, Celina vive um dos pontos altos de suas três décadas de carreira como atriz e professora de teatro. No início do mês, foi escolhida como melhor atriz no Prêmio Açorianos de Artes Cênicas por A Mulher Arrastada (2018), que venceu na categoria de melhor espetáculo. Em setembro de 2018, já havia sido a melhor atriz no Prêmio Braskem em Cena, que também elegeu este o melhor espetáculo.
Escrita por Diones Camargo e dirigida por Adriane Mottola, A Mulher Arrastada é uma recriação da história real de Claudia Silva Ferreira, uma mulher negra que morreu em 2014, aos 38 anos, ao ser baleada quando saiu de casa para comprar pão no Rio e teve seu corpo arrastado por 350 metros por uma viatura. Celina vive o papel de Claudia, contracenando com Pedro Nambuco, que interpreta um policial. O espetáculo está percorrendo o Brasil pelo circuito Palco Giratório Sesc com sessões de Sul a Norte até novembro, entre idas e vindas. A primeira parada, neste mês, é Santa Catarina.
— A questão da negritude e das mulheres negras esteve em minha carreira desde que comecei a fazer escolhas no teatro, mas esse é um momento especial porque tenho uma maturidade que me faz elaborar esse trabalho de maneira diferente – afirma, ao receber a reportagem em uma sala do Departamento de Arte Dramática (DAD) da UFRGS onde ministraria a disciplina de pós-graduação Práticas Cênicas e Relações Étnico-raciais.
Celina costuma dizer que é atriz porque é professora, e vice-versa. Para ela, uma atividade é indissociável da outra. Procura chamar a atenção dos alunos para o modo como as práticas cênicas tematizam questões étnico-raciais:
— Do ponto de vista teórico, é importante pensar o racismo como um sistema de exclusão, que alija um grupo de pessoas e o oprime de determinada maneira. As pessoas não estão morrendo só porque são ofendidas pelo seu cabelo, mas porque há um sistema de opressão e exclusão que as leva a serem assassinadas.
Trajetória que inspira novas gerações
Celina se tornou referência para as novas gerações, que se espelham em sua trajetória. Não apenas por causa dela, mas também por sua inspiração, Porto Alegre tem hoje uma cena de artistas negros levando aos palcos suas experiências, como os do grupo Pretagô.
— Considero isso importante e vejo que é importante para meus alunos – diz Celina. – Ao mesmo tempo, tem uma coisa que a (escritora) Conceição Evaristo diz. Quando estamos nesse lugar, isso faz aparecer a própria exclusão. É natural encontrar uma mulher em posição subalterna, mas não em posição de importância.
Também um veterano do teatro gaúcho, Jessé Oliveira, diretor do grupo Caixa-Preta e diretor da Casa de Cultura Mario Quintana, elogia:
— No contexto de uma cidade com herança reativa às conquistas raciais, Celina se inscreve numa dimensão culturalmente transformadora. Pessoa negra com notável carreira artística e acadêmica, é motivo de orgulho e exemplo de como podemos transformar nossa sociedade.
Uma das que se consideram discípulas de Celina é a atriz Dedy Ricardo, que defendeu uma dissertação de mestrado na UFRGS, em 2017, sobre as atrizes negras de Porto Alegre:
— Com Celina descobri o tipo de trabalho de atriz que me apaixona, que me comove, me interessa.
Dedy é colega de Celina na Usina do Trabalho do Ator (UTA), grupo que esta criou, em 1992, com Gilberto Icle. Foi com um trabalho da UTA, Nos Meses da Corticeira Florir (2001), dirigido por Ciça Reckziegel, que Celina ganhou seu primeiro Açorianos.
Única mulher entre sete irmãos, Celina nasceu em Porto Alegre e foi criada no bairro Tristeza. Estudou na rede municipal até a quinta série, quando a mãe decidiu batalhar por uma bolsa para ela em uma escola privada. Assim concluiu seus estudos. Veio o bacharelado na UFRGS em interpretação teatral, para onde voltou na condição de professora da graduação e da pós — é a única professora negra no curso de teatro. Celina conclui com outra fala de Conceição Evaristo:
— Essa dimensão de que não nos constituímos sozinhos é muito evidente para as pessoas negras. Se cheguei até aqui é porque teve todo esse esforço da minha mãe e de outras pessoas, não só da minha família. Quando estamos em algum lugar, há muitos conosco.