A peça ocorre de sextas a domingos, às 20h, e não às 10h como foi publicado entre 15h40min de 14 de junho e 15h05min de 16 de junho. O texto já foi corrigido.
Uma peça de uma autora alemã que resulta em duas montagens gaúchas. Assim é o projeto Transit, do Instituto Goethe de Porto Alegre, que chegou nesta ano à segunda edição. Nesta sexta (15), entra em cartaz Tremor – Sobre Como as Coisas Foram Chegar neste Ponto, encenação da Cia. Rústica para o texto de Maria Milisavljevic que teve suas primeiras sessões em maio na programação do 13º Festival Palco Giratório Sesc/POA.
Também estreou no festival a versão do diretor Lucca Simas com o Grupojogo, coletivo que completa 10 anos em 2018 e terá uma mostra comemorativa de 5 a 8 de julho em diferentes espaços da Capital. O Tremor do Grupojogo terá nova sessão dia 6 de julho, às 20h, na Sala Álvaro Moreyra (Av. Erico Verissimo, 307).
Na entrevista abaixo, realizada por e-mail, a diretora Patrícia Fagundes fala sobre a montagem de Tremor da Cia. Rústica, que estará no Teatro do Instituto Goethe de sextas a domingos, até 1º de julho (veja informações sobre ingressos ao final).
Na sua visão, sobre o que trata o texto de Maria Milisavljevic, que aborda inúmeros temas ao mesmo tempo?
Como o tempo em que vivemos, marcado pela velocidade, simultaneidade, múltiplos atravessamentos. Quem somos? Fragmentos de nós em imagens aceleradas, frases intercortadas, nossos modos de percepção formatados por horas diante de telas, zap, cut, fade. Banalidades, questões político-sociais decisivas e inquietações existenciais se cruzam em um movimento de dedo. O texto traz esta mistura toda: música pop, referencias eruditas, notícias, guerra, Blake, desastres ambientais, Hollywood, games, séries e redes sociais compondo um território virtual/real/ficcional cotidiano.
Ensaiamos desde janeiro. Nesse tempo de convívio com o texto, ele começou a revelar seu jogo, estrutura, movimento – ou melhor, fomos descobrindo nosso jogo com o texto. Porque nada é absoluto em si mesmo, nós, e o teatro, só nos fazemos em relação. Nesta nossa relação com o texto, percebo certa simplicidade bem estruturada, histórias que se cruzam e se completam, ainda que entrecortadas. Como a vida de todo dia, fazemos muitas coisas ao mesmo tempo, a fragmentação é um elemento cotidiano. O texto desdobra nosso tempo fragmentado e caótico, a violência do modelo neoliberal forçado em nossas goelas, a conivência disfarçada em humanismo da classe média europeia, guerra e refugiados, fala do absurdo disso tudo e da possibilidade de imaginar outros mundos.
Inscrevi uma proposta no edital do Transit por três motivos centrais: fazer teatro, que me salva de tanta lama (e estou numa intensidade de fazer que é um desespero de viver no meio deste desastre todo), pelo próprio conceito central do projeto – duas encenações para o mesmo texto, um conceito de pesquisa que me reconecta com meu trabalho de graduação no Departamento de Arte Dramática da UFRGS (lá no século passado, uma montagem entre três diretores) – e pelo otimismo do texto. Um otimismo crítico que reconhece a lama toda, o absurdo e fracasso total da civilização, e ainda assim consegue ousar a imaginação de outra realidade possível. Pra mim, acaba sendo festivo, dentro do conceito de festividade que investigo. Um forma de negociar com a morte.
O quanto você acredita que esse texto escrito por uma autora alemã dialoga com a realidade brasileira?
Vivemos em rede, mesmo sem querer. O modelo neoliberal afeta todo mundo em sua violência. Dito isso, há um abismo entre a experiência europeia e a experiência brasileira. Percebi e percebo esse abismo através da experiência de viver em Londres, de 1999 a 2003, e em Madri, de 2006 a 2010. Morando na Europa, percebi que sou brasileira e de lugar nenhum também. Percebi a falácia do humanismo europeu que ainda idealizamos. Não só pelos períodos sanguinários de colonização, mas pelo que acontece hoje.
Imigrantes africanos morrem tentando chegar em terras europeias todos os dias. Afogados. Há campos de detenção para imigrantes ilegais, que vem de todos os países onde a vida fica impossível, justamente como consequência de políticas, negociatas e sacanagens irresponsáveis do jogo econômico internacional. Agora, hoje. Ser ilegal é não existir. Então ok, tem sistema de saúde de qualidade gratuito para todos – desde que você tenha o carimbo de legalização. O passaporte correto. Poderia seguir na descrição deste estado das coisas, e nem entrei nas guerras do século 21, mas penso que o texto já faz certo inventario.
Enfim, penso que o texto dialoga com a realidade do tempo, o que nos inclui, mas evidentemente de um ponto de vista europeu. E aí, nesse ponto, precisamos canibalizar. Dialogar com, apropriar, reinventar. Inserimos algumas notas da tradução, adaptamos algumas breves frases ou produtos (como marca de balas), fizemos alguns cortes. Porém, a adaptação não está realmente está nestes modestos procedimentos. Está na forma mesma de encenar o texto, no movimento, na coreografia, nos modos de percepção e relação com o que é dito, em nossos corpos, na temperatura da palavra encarnada, nas tramas sensíveis e explosivas da montagem.
Que conceitos orientaram a montagem, o número de atores, a cenografia, enfim, a proposta?
Século 21, paisagens caóticas de violência e miséria disfarçadas sob luzes de neon. O mundo treme, e as represas deixarão de aguentar em algum momento. Ulro é aqui. No meio da turbulência dos acontecimentos e movimentos do mundo, navegamos em meio a naufrágios. Quem somos? Ainda que atropelados pela lama toda, canibalizamos. Canibalizar, ou apropriar e reinventar antropofagicamente, é simultaneamente um conceito e um procedimento importante para pensar dinâmicas de globalização, pós-modernidade e descolonização.
A encenação devora e celebra a teatralidade ao apoiar-se no jogo entre artistas e espectadores, na possibilidade da composição compartilhada de mundos. Engrenagens expostas, do mundo e da cena, jogo revelado, ossos rasgando a carne. Valoriza-se a palavra sem deixar de explorar corporeidades intensificadas e vibrantes, uma cena festiva e corpórea, com coreografias de Marco Rodrigues, músicas originais de Leonardo Machado, trilha pesquisada, colaborações afetivas de muitos parceiros da (Cia.) Rústica, além dos que aparecem na cena. A cenografia é composta por uma estrutura móvel, escadas, plataforma, toneis. Espaços imaginários construídos, destruídos e refeitos pelo jogo da cena, através do corpo, da palavra, composições no tempo/espaço. Importante dizer que são pedaços reinventados de outros cenários da Cia Rústica, memórias impressas em escadas, plataforma, tonéis, procedimentos de colagem e reciclagem, nossos restos em outras histórias.
Este procedimento é poético e intencionalmente político em vários aspectos: por uma ecologia do teatro, reciclagem; forma de driblar nossa precariedade econômica; escolha frente à escassez de uma verba reduzida. E aqui direção e produção dançam coladas, no meu próprio corpo que se entende como funções criadoras. Preferimos investir os parcos recursos financeiros nas pessoas, no seu trabalho, do que em coisas. Entendo o teatro como arte encarnada, corpórea, pessoal.
Tremor reflete a turbulência política e social dos últimos tempos, no país e no mundo, que nos atropela em sua velocidade e violência. Como podemos narrar nossa história, nosso tempo, nosso mundo? O teatro é um lugar onde tudo é possível, devorado, recriado. Um espaço onde podemos nos encontrar e repensar, onde discutimos e reinventamos nossa história. Pensar o passado para perceber o presente e imaginar outros futuros.
Uma montagem proposta por uma encenadora para o texto de uma dramaturga, ocupando um território frequentemente ocupado por homens. Um elenco de diferentes, ainda que próximas, gerações, entre 22 e 48 anos. Operação de som em cena, a diretora se aventurando no palco. Uma equipe de antigas e novas parcerias. Diferentes identidades em diálogo. Quem quer que sejamos nós, somos diversos, mulheres, gays, negros, lésbicas, jovens, mais velhos, nós, poucos e muitos, desejantes e incertos, tremendo e imaginando, buscando tecer com o mundo, assim como os contextos tecem e voltam a tecer a realidade, aproximando fazer artístico, experiência estética, ética e política.
Uma novidade é que você vai atuar neste espetáculo. Como veio essa vontade de voltar a estar em cena? Começou com suas participações nos Cabarés da Rústica?
Hehe. Sim, acho que começou aí, 2016. Uma vontade de entrar no palco, aos poucos, um pé, o outro, e aí o corpo todo, desejo de outro risco, ou de mergulhar ainda mais no fazer, ou simplesmente me desafiar de outras formas, desacomodar, balançar. Penso que dirigir e atuar ao mesmo tempo é absurdo, são fazeres de uma demanda imensa, fazer só um deles com certa dignidade já é suficientemente difícil. E então, depois de mais de 20 anos de direção cênica, resolvo atuar também. Uma insanidade, uma contradição. Que me mobiliza. Precisamos estar conectados como nossas incertezas e vulnerabilidades, né? E amo palavras. Este é um texto de muitas palavras. É preciso ressaltar que minha participação tem certo distanciamento, um lugar diferente, não estou todo o tempo em cena como Evandro (Soldatelli), Priscilla (Colombi) e Lauro (Fagundes). Mas lá estou. Com a ajuda do elenco, do Ander (Belotto), que fez assistência, do Marco Rodrigues, que esteve muito junto no processo. Porque teatro a gente faz assim. Juntos.
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Tremor – Sobre Como as Coisas Foram Chegar neste Ponto
Reestreia nesta sexta-feira (15). De sextas a domingos, às 20h. Temporada até 1º de julho.
Classificação: 14 anos. Duração: 80 minutos.
Teatro do Instituto Goethe (Rua 24 de Outubro, 112), fone (51) 2118-7800, em Porto Alegre.
Ingressos: R$ 40, com desconto de 50% para estudantes, idosos e classe artística. À venda pelo site.