
Uma das iniciativas mais renovadoras dos palcos gaúchos está de volta em 2018. É o projeto Transit, do Instituto Goethe de Porto Alegre, que seleciona dois diretores – um experiente e outro jovem – para criarem paralelamente espetáculos baseados no mesmo texto de um dramaturgo alemão. A ideia é mostrar como uma mesma matéria-prima pode se transformar substancialmente quando transposta para a cena.
No primeiro ano do projeto, em 2017, Camilo de Lélis e Alexandre Dill encenaram montagens de As Trevas Risíveis, de Wolfram Lotz. Em 2018, será a vez de Patrícia Fagundes e Lucca Simas, que tiveram seus projetos escolhidos por uma comissão de especialistas e já estão em meio a seus processos de criação. Eles estrearão em maio, durante o Festival Palco Giratório Sesc/POA, suas versões de Tremor, texto inédito no Brasil da dramaturga alemã contemporânea Maria Milisavljevic.
Traduzida ao português por Luciana Waquil, Tremor é uma peça sem personagens, estruturada por vozes que podem ser atribuídas ao número de atores que os diretores julgarem conveniente. Em seu formato desconstruído, não figura uma única trama, mas uma composição de narrativas, diálogos e fragmentos que abordam temas como guerra, injustiça e a sociedade do espetáculo da TV e das redes sociais. Suas referências vão da mais erudita citação de William Blake ao universo do entretenimento: Os Simpsons, Minecraft, Playstation, David Hasselhoff (o Mitch da série S.O.S. Malibu). E não faltam alusões irônicas à política alemã.
Tudo isso impõe enormes desafios aos encenadores brasileiros, que terão a missão de aproximar o texto da realidade dos espectadores. Conhecida por seu trabalho à frente da Cia. Rústica, um dos grupos mais destacados do Estado, Patrícia Fagundes recorre ao conceito da antropofagia para descrever seu método de apropriação da dramaturgia de Maria Milisavljevic: devorar, incorporar e transformar em outra coisa. Participarão do elenco Evandro Soldatelli, Lauro Fagundes, Priscilla Colombi e Vigo Cigolini. Uma novidade é que a própria diretora deverá estar em cena, embora avise que ainda não bateu o martelo sobre essa decisão (“Estou pensando em me demitir”, brinca).
Acostumada a trabalhar com dramaturgias construídas em sala de ensaio, e não com textos prontos (embora pretenda voltar a Shakespeare em 2019), Patrícia identificou-se com a maneira como a autora alemã une preocupação política e vibração poética em uma perspectiva “otimista em meio a certo niilismo”, em suas palavras:
– Desde o início, houve um desafio para mim e para os atores, que se sentiam distantes do texto. Falei: “Vamos nos aproximar dele”. Esse procedimento dialoga com os outros espetáculos que dirigi, pois há uma tentativa de proximidade do material, buscando um humanismo na atuação. É o investimento no teatro como encontro que caracteriza o trabalho da Cia. Rústica.
Se Patrícia aposta na teatralidade, Lucca Simas promete uma versão de Tremor mediada pelas novas tecnologias em sua estreia na direção profissional – ele já havia encenado, no âmbito acadêmico, os espetáculos Insustentável (2010) e Shopping and Fucking (2013) e vem trabalhando como iluminador. Acentuando as referências ao universo da internet e dos games presentes no texto, a montagem contará com projeções em vídeo, câmeras ao vivo e há até a ideia de trabalhar com um drone. O elenco será integrado por atores entre 28 e 34 anos, jovens como o diretor: Gustavo Susin, Louise Pierosan, Lucas Prado e Manu Menezes.
Lucca identificou na peça de Maria Milisavljevic inquietações globais, como o lugar do mundo virtual nas nossas relações, mas acredita que algumas referências devem ser adaptadas à realidade brasileira – é nesse ponto que seu projeto encontra algo em comum com o de Patrícia. Para isso, ele busca o conceito de biopoética, que desenvolveu em sua dissertação de mestrado. A ideia é trabalhar a vida cotidiana no palco de forma não alegórica, mas afetiva, sensibilizando o público.
– Quando converso com alguém ao vivo, olhando nos seus olhos, compreendo o que essa pessoa está me dizendo porque também sinto sua emoção. O trabalho da biopoética é pegar o que há de mais potente na minha vida e na vida dos atores e trazer para a cena de forma que dialogue com as pessoas – explica Lucca.
Projeto Transit 2018
- TREMOR, DIRIGIDO POR PATRÍCIA FAGUNDES
Estreia dias 17 e 18 de maio no Teatro do Instituto Goethe (Rua 24 de Outubro, 112), em Porto Alegre
- TREMOR, DIRIGIDO POR LUCCA SIMAS
Estreia dias 22 e 23 de maio no Teatro do Instituto Goethe
- No dia 23 de maio, no mesmo local, haverá debate com a dramaturga Maria Milisavljevic, com os diretores Patrícia Fagundes e Lucca Simas e com os críticos Renato Mendonça e Michele Rolim, do site Agora Crítica Teatral
Quem é Maria Milisavljevic
A autora do texto escolhido para o projeto Transit em 2018 é uma dramaturga, diretora e criadora alemã nascida em 1982, em Arnsberg, que atualmente vive em Berlim. Em seus anos de formação, cursou estudos culturais ingleses, literatura inglesa e história da arte. Trabalhou com diferentes companhias na Alemanha, na Inglaterra e no Canadá, onde morou, atuando como dramaturga residente no Tarragon Theatre. Em 2015, a peça Abyss esteve em cartaz no Theaterlab, em Nova York, dirigida por Maria Mileaf. Tremor, que estreará no Brasil, ganhou na Alemanha os prêmios Heidelberger Stückemarkt e Else-Lasker-Schüler.