A coordenação do Porto Alegre Em Cena viveu momentos de tensão nos últimos dias, após a Justiça proibir, na sexta-feira, no Sesc de Jundiaí (SP), a apresentação de O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu, que terá sessões nesta quinta (21) e sexta (22), às 22h, no Teatro Bruno Kiefer da Casa de Cultura Mario Quintana. Polêmica desde a concepção, a peça de Jo Clifford, dramaturga transgênero escocesa, é uma mistura de monólogo e contação de histórias e apresenta Jesus no tempo presente corporificado por uma travesti.
A angústia da equipe do festival de teatro aumentou na segunda-feira, quando um advogado solicitou a proibição do espetáculo teatral na Capital, sob a alegação de que seria um “vilipêndio religioso” e desrespeitaria as religiões cristã, católica e espírita. Os ânimos só se arrefeceriam no final da tarde do dia seguinte, após o juiz José Antônio Coitinho, da 2ª Vara da Fazenda Pública, em Porto Alegre, negar a suspensão da peça, que tem formato semelhante ao da eucaristia. A protagonista Renata Carvalho, travesti e atriz com 20 anos de carreira no teatro, explica:
– A peça tem toda a liturgia de uma missa. A Jo (Clifford) ressignifica o mito de Jesus Cristo, uma pessoa inocente que foi julgada e punida, questionando: “Quem seria hoje a população mais estigmatizada e marginalizada e que continua sendo crucificada?”. E aí ela coloca a população trans na peça. Quando a gente traz este texto para uma realidade brasileira, fica muito mais forte. Porque somos o país que mais mata travestis.
Nesse cenário, afirma a artista, a peça busca atualizar a palavra de Jesus, com foco na tolerância, no amor e no perdão.
– A Bíblia tem sido interpretada de uma forma errada, porque ela não fala de você odiar o outro, mas de amar o outro. É disso que o espetáculo trata. Claro que, quando isso é trabalhado em um corpo trans, acaba tendo um cunho político – diz Renata, que opina: – Se Jesus voltasse, digo que ele seria gorda, preta, trans e favelada. E seria crucificado de novo.
Ou alvo de orações, boicotes e protestos, o que ocorre desde a estreia de O Evangelho Segundo Jesus no país, em agosto do ano passado, no Festival Internacional de Londrina (Filo). Não deve ser diferente na sessão desta quinta.
– Mas a repercussão em apoio é muito maior, sempre – afirma Renata, que se apresentará para um teatro lotado, com ingressos esgotados nas duas sessões e pedidos nas redes sociais de sessão extra. – Estamos num momento difícil de fundamentalismo religioso. Esse espetáculo e a exposição Queermuseu (que foi cancelada precocemente pelo Santander Cultural após protestos) são vítimas de intolerância religiosa.
É um cenário que, infelizmente, não se restringe ao Brasil. Quando Jo Clifford apresentou pela primeira vez a peça no ano de 2009, em Glasgow, na Escócia, ela foi condenada pelo arcebispo da cidade, que declarou, na ocasião, ser "difícil imaginar uma maior afronta à fé cristã".