A Justiça negou pedido de um advogado, que, nesta segunda-feira (18), solicitou a proibição do espetáculo teatral O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu dentro da programação do 24º Porto Alegre Em Cena. As apresentações estão marcadas para esta quinta (21) e sexta (22), às 22h, no Teatro Bruno Kiefer da Casa de Cultura Mario Quintana. Os ingressos estão esgotados.
A montagem é estrelada pela atriz e ativista Renata Carvalho, travesti com 20 anos de carreira no teatro. De acordo com o material de divulgação do festival, "a peça provoca reflexão ao expor problemas sociais, ao mesmo tempo em que emite uma mensagem de amor, perdão e aceitação. A identidade travesti é elemento-chave do espetáculo, que propõe uma transformação do olhar diante de identidades marcadas pelo estigma e pela marginalização".
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Na decisão proferida nesta tarde, o juiz José Antonio Coitinho, da 2ª Vara da Fazenda Pública, em Porto Alegre, negou a suspensão da peça, evocando o direito de liberdade de expressão: "Não se pode simplesmente censurar a peça O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu, sob argumento de que estamos em desacordo com seu conteúdo. A liberdade de expressão tem de ser garantida — e não cerceada — pelo Judiciário. Censurar arte é censurar pensamento e censurar pensamento é impedir desenvolvimento humano", fundamentou o magistrado.
Na petição ajuizada contra o município de Porto Alegre, esfera que realiza o festival, e contra a Pinacoteca Ruben Berta, onde ocorreriam as apresentações antes de serem transferidas para o Teatro Bruno Kiefer, o advogado Pedro Lagomarcino define o espetáculo como "um verdadeiro escárnio, um deboche psicodélico de mau gosto, haja vista que subverte questões religiosas e macula o sentimento do cidadão comum, avesso a esse estado de coisa".
Lagomarcino pedia a suspensão das duas sessões em caráter liminar e depois o cancelamento definitivo com base nos artigos 208 e 287 do Código Penal e no artigo 20 da lei 7.716/89. O artigo 208 do Código Penal fala sobre "escarnecer de alguém publicamente, por motivo de crença ou função religiosa; impedir ou perturbar cerimônia ou prática de culto religioso; vilipendiar publicamente ato ou objeto de culto religioso". O artigo 287 trata de "fazer, publicamente, apologia de fato criminoso ou de autor de crime". Já o artigo 20 da lei 7.716/89 se refere ao ato de "praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional".
Em entrevista à reportagem de Zero Hora, Lagomarcino argumentou:
— Entrei com a ação porque o espetáculo propõe o retorno de Jesus como travesti. Isso é um vilipêndio religioso. Desrespeita a religião cristã, católica e espírita. Para essas religiões, Jesus Cristo é o filho unigênito. Se o Pai Celestial escolheu Jesus Cristo, não é o homem que pode propor a vinda dele como travesti. Isso eu achei de mau gosto, para ser educado. É um escracho com essas religiões.
O argumento foi rebatido pelo juiz José Antonio Coitinho em sua decisão: "A peça, que possui texto de Jo Clifford, dramaturga transgênero escocesa, propõe — fato notório — uma reflexão sobre o preconceito que recai sobre orientações sexuais das pessoas. A atriz e travesti Renata Carvalho corporifica figura religiosa no tempo presente, com o que não pratica ilícito algum. Se a ideia é de bom ou mau gosto, para mim ou para outra pessoa, pouco importa".
O advogado Lagomarcino disse que não assistiu à peça e que baseou a ação em textos publicados na imprensa. A percepção dele sobre o espetáculo foi contestada pelo secretário de Cultura de Porto Alegre, Luciano Alabarse, que idealizou o Porto Alegre Em Cena e foi seu coordenador-geral até o ano passado. Para o titular da pasta, é "equivocado" afirmar que a peça propõe o retorno de Jesus como travesti:
— Não existe nada parecido com essa leitura em qualquer momento da peça. A atriz diz trechos dos Evangelhos para pedir tolerância e amor. Ela deixa muito claro que a personagem não é Jesus, mas usa de ensinamentos dele para busar seu apaziguamento interior, que é o papel de todas a religiões. Elas nos transformam em pessoas melhores.
Ainda segundo Alabarse, o espetáculo recebeu classificação etária de 16 anos pelo Ministério da Justiça. Para ele, a exibição tem respaldo do artigo 220 da Constituição Federal, segundo o qual "a manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo, não sofrerão qualquer restrição".
O Evangelho Segundo Jesus... esteve recentemente no centro de uma polêmica ao ser proibido pela Justiça no Sesc de Jundiaí (SP) na última sexta-feira (15/9). Em sua decisão, o juiz Luiz Antonio de Campos Júnior, da 1ª Vara Cível da Comarca de Jundiaí, alegou que a peça é "atentatória à dignidade da fé cristã, na qual Jesus Cristo não é uma imagem e muito menos um objeto de adoração apenas, mas sim o filho de Deus". O Sesc recorreu da decisão. Depois, a montagem foi exibida, com sucesso, em outras cidades.
Confira a decisão do juiz na íntegra:
Há que ser indeferido o pedido liminar.
Não se pode simplesmente censurar a peça O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu, sob argumento de que estamos em desacordo com seu conteúdo. A liberdade de expressão tem de ser garantida – e não cerceada - pelo Judiciário. Censurar arte é censurar pensamento e censurar pensamento é impedir desenvolvimento humano.
O crime e a imoralidade que fere têm de ser oprimidos pelo julgador. A liberdade preservada.
A peça, que possui texto de Jo Clifford, dramaturga transgênero escocesa, propõe - fato notório - uma reflexão sobre o preconceito que recai sobre orientações sexuais das pessoas. A atriz e travesti Renata Carvalho corporifica figura religiosa no tempo presente, com o que não pratica ilícito algum. Se a ideia é de bom ou mau gosto, para mim ou para outra pessoa, pouco importa.
Ao juiz é vedado proibir que cada ser humano expresse sua fé – ou a falta desta – da maneira que melhor lhe aprouver. Não lhe compete essa censura.
Há pouco tempo, assistimos ao assassinato de cartunistas franceses do Charlie Hebdo, que satirizaram questões religiosas. Na essência, foram censurados. Censurados por expressar sua maneira de pensar.
Não, ao juiz não compete censurar a fé ou sua ausência.
A alegada questão da sexualidade de personagens, imaginada para o espetáculo, é absolutamente irrelevante. Transexual, heterossexual, homossexual, bissexual, constituem seres humanos idênticos na essência, não sendo minimamente sustentável a tese de que uma ou outra opção possa diminuir ou enobrecer quem quer que seja representado no teatro.
Não se está a defender que é correta a total liberdade de escolha sexual e muito menos a condenar essa postura. Defendemos a liberdade de escolher, de toda pessoa escolher, de acordo com sua evolução, o que fazer de sua vida, em todos os aspectos, mantido o respeito pelo seu semelhante.
Preciso é, de pronto, dizer que, gostemos ou não, a famigerada peça é, sim, uma obra de arte. Neste aspecto, dentro da subjetividade inerente ao tema, possível arriscar que erra o autor quando afirma "isso não é arte".
Antes da estreia na capital gaúcha, já está aflorando paixões. Ódio, parece já ter despertado.
O que melhor consistiria em arte do que a obra que toca, acaricia ou fere, os sentimentos humanos? O ajuizamento da presente demanda e as angústias que vertem da inicial são a prova contundente de que, de arte, estamos a falar.
Claro que, como tal, está sujeita a toda crítica e o processo judicial a critica duramente.
Não estamos falando de encenação que será transmitida em televisão aberta. Tampouco em televisão a cabo. Nem em rádio serão ouvidas as falas dos artistas. Não vai invadir nossas casas e atormentar o imaginário de nossos filhos ou vilipendiar a moral dos idosos.
Trata-se de espetáculo – funesto ou abençoado – que terá lugar em ambiente fechado, cujo ingresso demandará despender dinheiro, não sendo permitida a entrada de pessoas com idade inapropriada. Na ficha técnica consta "classificação: 16 anos". A nossos filhos em tenra idade não alcançará, a não ser que assim desejemos e para tanto diligenciemos. Não há falar em agressão à cultura ou à formação do caráter de quem quer que seja.
No popular, diríamos, irá quem quiser ver.
E, sem citar um único artigo de lei, vamos garantir a liberdade de expressão dos homens, das mulheres, da dramaturga transgênero e da travesti atriz, pelo mais simples e verdadeiro motivo: porque somos todos iguais.
"Je suis Charlie".
Citem-se. Intimem-se.
Após as defesas, voltem para análise do pedido de inclusão no polo passivo de Esther Pillar Grossi.
Dil. Legais.