Sábado e domingo passados a Ospa apresentou no Theatro São Pedro sua montagem de Don Pasquale de Gaetano Donizetti (1797-1848), uma das mais bem-sucedidas obras de um gênero cômico conhecido como opera buffa. A história trata de uma pegadinha protagonizada por um jovem casal apaixonado, Ernesto (Giovanni Tristacci) e a jovem viúva Norina (Carla Domingues), que planeja acabar com os planos de Pasquale (Saulo Javan), tio de Ernesto, um solteirão avarento de 70 anos que deseja casar com a moça. Ernesto se recusa a casar com uma mulher escolhida pelo tio e, pela rebeldia, é deserdado. O Dr. Malatesta (Douglas Hahn) sugere a Pasquale casar com sua virtuosa irmã Sofronia, mas é tudo parte da pegadinha, pois sua "irmã" é Norina disfarçada. Após uma cerimônia de casamento de mentira, atestada por um falso tabelião (Lucas Alves), a bela, recatada e do lar Sofronia passa a ditar as regras e a esbanjar em banquetes e extravagâncias que, para o divertimento de Ernesto, Norina e Malatesta, chocam o pobre velho até ele dizer "chega". Pasquale concorda então que Ernesto se case com Norina e mantenha sua herança, momento em que a pegadinha é revelada e Pasquale encara tudo com surpreendente bom humor. A moral da história também é uma piada: velhos não deveriam casar com mulheres muito mais jovens.
Leia mais
Interrompida em 2014, obra da Sala Sinfônica da Ospa tornou-se depósito de lixo
23º Porto Alegre Em Cena inicia pré-venda de ingressos
Sylvia Plath é tema de peça encenada em apartamento no Centro da Capital
A obra foi estreada em Paris em 1843, cinco anos antes da morte do compositor, que chegou a compor mais de 60 óperas. A idade de uma obra, porém, não se mede apenas pela data, mas também pelas transformações estéticas que a sucederam. Don Pasquale é, portanto, música muito antiga. A diretora cênica Camila Bauer apresentou nesta montagem sua já tradicional proposta de aproximar o antigo do novo por meio de um livre diálogo entre contextos: abrindo a noite, um homem rococó em aparência e trejeitos pede que desliguemos os celulares. O maestro é convidado ao palco, surge uma equipe de filmagem e uma claquete marca o início da ação.
Um dos elementos contemporâneos propostos por Bauer é uma certa interatividade que se pressupõe do público, que, como diante de uma mesa de edição, poderá escolher o foco de sua atenção. Não é pequeno o desafio de lidar com uma variedade de focos: há os cantores solistas, emoldurados por varas para microfone, rebatedores fotográficos, câmeras, diretora e contrarregras ao lado de painéis que cobrem parte dos violinos e violoncelos. Ao fundo, há dois planos cenográficos para a equipe de filmagem e um coro sinfônico em figurinos deslumbrantes. Entre uma e outra claquete, uma fotógrafa circula pelo palco. Os diferentes planos formam uma grande muvuca que, embora intencional, não contribui com o entendimento da história.
Don Pasquale, como qualquer ópera de seu período, tem poucas camadas musicais e cênicas e é altamente hierarquizada: solistas ocupam o primeiro plano e qualquer disputa de nossa atenção corre o risco de ser interpretada como interferência. Um caso emblemático do uso de diferentes planos é o final do primeiro ato da Don Giovanni de Mozart, que, além da orquestra no fosso, conta com duas orquestras no palco, cada qual em um ritmo diferente. A sobreposição de camadas entre solistas, coro e instrumentistas não deixa dúvidas: trata-se de um grande baile onde nobres dançam o minueto enquanto camponeses, ao mesmo tempo, dançam uma quadrilha, em um caso notável de muvuca com função narrativa.
A falta de salas de ópera em Porto Alegre é uma questão incontornável. Apesar disso, por ficarem posicionados no palco, em vez do fosso, a orquestra e o regente Evandro Matté, em excelente performance, ganharam protagonismo não tão costumeiro em óperas tradicionais. O belíssimo solo de trompete na abertura do segundo ato também não deve ter passado despercebido: será essa a fonte de inspiração de Nino Rota para compor o tema de O poderoso chefão, outro "gancho", ainda que fortuito, com a contemporaneidade?
O elenco foi uma escolha bastante feliz e arrancou aplausos merecidos. Javan fez um hilário Don Pasquale, e seus encontros com o carismático Dr. Malatesta de Hahn foram especialmente leves e divertidos. A Sofronia de Carla Domingues foi encantadoramente caricata na medida certa. Embora a montagem não tenha a oportunidade do amadurecimento que só uma longa temporada poderia proporcionar, a direção cênica dos cinco solistas foi excepcional. A noite foi divertidíssima, e tenho certeza de que todos aguardam pela próxima montagem da Ospa de uma ópera antiga ou (espero) mais recente que a popularização da palavra "muvuca".
* Christian Benvenuti é compositor e pesquisador de pós-doutorado em música na UFRGS