O diretor brasileiro Walter Salles revive o fantasma da ditadura militar com Ainda Estou Aqui, filme em competição no Festival de Veneza, exibido na sessão de gala da disputa neste domingo (1º). A produção é, sobretudo, uma homenagem à esposa de Rubens Paiva, engenheiro e político desaparecido na década de 1970.
Baseado no livro homônimo escrito por um dos filhos do casal, Marcelo Rubens Paiva, o filme faz reverência à mãe incansável, Eunice, que nunca desistiu da busca pelo marido.
— A história de Eunice se confunde com a do Brasil naqueles anos horríveis que vivemos — lembrou Salles em coletiva de imprensa na manhã de domingo. — É isso que me interessa no cinema.
Após o fim da sessão na cidade italiana, o longa foi aplaudido por 10 minutos e levou o público (incluindo Marcelo Rubens Paiva) às lágrimas.
Quem foi Rubens Paiva
Paiva foi deputado de esquerda até que a ascensão dos militares em 1964 o levou ao exílio. Meses depois, retornou inesperadamente ao país, onde retomou a carreira de engenheiro, sem abandonar os contatos com a clandestinidade.
Quando a repressão militar se agravou no Brasil, Paiva foi preso, em janeiro de 1971. Um grupo de homens armados o tirou de sua casa no Rio de Janeiro e ele nunca mais reapareceu.
Sua esposa, Eunice, também foi detida juntamente com uma de suas filhas e passou 12 dias sob interrogatórios.
Enfrentava a tragédia com um sorriso no rosto
Interpretada por Fernanda Torres e Fernanda Montenegro (na velhice), Eunice encontrou um jeito de se reconstruir sem abandonar a educação dos filhos em meio à tragédia.
Diante da imprensa, posava com um sorriso. O mesmo sorriso que mostrou quando finalmente conseguiu, 25 anos depois do desaparecimento do marido, obter a certidão de óbito oficial do amado.
— Ela era uma mulher que enfrentava a tragédia, que evitava os melodramas — afirmou Fernanda Torres na coletiva. — Ela não queria chorar na rua com a família. Não queria que seus filhos se tornassem vítimas da ditadura. E a forma como decidiu fazer isso foi com o silêncio e um sorriso. É incrível.
Arte como manutenção da memória
Para a imprensa, no domingo, Marcelo Rubens Paiva explicou por que surgiu a vontade de escrever um livro sobre a mãe. Segundo ele, a obra também reflete a sua vontade de denunciar a constante ameaça contra a democracia.
— Anos depois, quando a minha mãe adoeceu com Alzheimer, senti que tinha que escrever o livro sobre ela — contou o escritor. — Foi muito importante escrever esse livro nesse momento, porque a democracia está em perigo em todo o mundo.
— O cinema é uma ótima ferramenta contra o esquecimento. A literatura também — acrescentou Walter Salles. — Nunca pensei que a minha geração veria o ressurgimento da extrema direita — considerou o diretor, conhecido por filmes como Central do Brasil (1998), Diários de Motocicleta (2004) e Na Estrada (2012).
Além de Fernanda Torres e Fernanda Montenegro, a produção conta também com Selton Mello e Maeve Jenkings no elenco.