Jurado da Mostra Competitiva Brasil do Cine Esquema Novo, o ator Silvero Pereira volta a Porto Alegre embalado pelo sucesso de Lunga, um dos personagens mais aclamados do cinema nacional em 2019. Sob a pele do cangaceiro queer, Silvero conseguiu ser um dos maiores destaques do badalado Bacurau – filme de Kléber Mendonça Filho e Juliano Dornelles que conta com nomes consagrados como Sônia Braga e Udo Kier.
Natural de Mombaça (CE), Silvero se projetou para o grande público brasileiro ao viver Nonato em A Força do Querer, personagem que se dividia entre o trabalho como motorista ao dia e as apresentações como drag queen à noite. Em seguida, participou da Dança dos Famosos, no Domingão do Faustão.
Aos 37 anos, Silvero iniciou sua trajetória nos palcos em 2002, quando criou seu alter ego drag queen Gisele Almodóvar. Em 2005, estreou sua primeira peça, Uma Flor de Dama. Em sua trajetória no teatro, rodaria o Brasil com a montagem BR-Trans – que apresenta recortes de vidas a partir de pesquisas pelas ruas e casas de shows com travestis, transformistas e transexuais de Porto Alegre. Para esse projeto, ele viveu uma temporada na Capital gaúcha.
– Cheguei aqui em dezembro de 2012 para começar o projeto BR-Trans. Era para ficar seis meses, mas já estava envolvido com a cidade e as pessoas, e acabei ficando mais um ano e meio para além do projeto – relata.
Em entrevista concedida na Cinemateca Capitólio, na última quinta-feira (21), Silvero conversou com GaúchaZH sobre o sucesso de Lunga e sua trajetória.
Você está em Porto Alegre como jurado do Cine Esquema Novo. Como você se conecta com o festival?
Conheço o festival por conta da parceria com vários amigos aqui, mas eu nunca tinha participado. Sempre tive essa relação de vários amigos em comum que faziam parte do Cine Esquema Novo. Para mim tem sido um prazer agora acompanhar de perto, ainda mais como jurado. É a minha primeira experiência como júri de um festival de cinema. Geralmente era chamado para dar oficinas de interpretação ou atuação, é o meu debut como júri (risos).
Com Lunga, você foi um dos maiores destaques do cinema brasileiro em 2019, que caiu no gosto do público nas redes sociais. É comum ver os "lungalovers" criando memes, ilustrações, enfim, repercutindo seu trabalho. Na sua opinião, porque Lunga fez tanto sucesso?
Isso já era esperado desde o roteiro. Os diretores (Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles) tiveram um cuidado muito grande na seleção porque sabiam que esse era um personagem bem significativo para trama. Ao ler o roteiro, eu já entendia isso. Quando fui filmar pela primeira vez Bacurau, havia uma expectativa muito grande de todo o elenco. Quem é Lunga? Lunga vai chegar? Essa expectativa não é só dos espectadores, após a produção e a estreia do filme, mas já vem desde a pré-produção, era uma expectativa criada na concepção da personagem. Acho que Kleber e Juliano foram muito sensíveis em levar isso desde a origem da criação do roteiro até a sua execução na tela.
Como foi a construção de Lunga?
Foi muito horizontal: Kleber, Juliano, Emilie Lesclaux (a produtora), as caracterizadoras, a Rita Azevedo do figurino, foram pessoas que conversaram comigo o tempo inteiro. Me mandavam referências de imagens diversas vezes e fomos entrando em um denominador comum sobre quem seria essa figura e como seria a composição dela. O personagem se construiu a partir dessas conversas, com Kleber e Juliano interferindo o tempo inteiro, dando pitacos no figurino. Foi um processo bem coletivo.
E a receptividade nas ruas?
É muito especial. Assim que cheguei hoje, no aeroporto, as pessoas já vêm falar com o Lunga e me tratam como Lunga. Até então o meu lugar de reconhecimento estava muito atrelado à TV, pelo que eu tinha feito em A Força do Querer (Nonato) e pela minha participação na Dança dos Famosos, no Domingão do Faustão. Aí tem na cabeça das pessoas o Nonato. Então, Lunga passou a tomar esse lugar. Isso é muito legal porque não é comum no cinema brasileiro ver um personagem ganhar essa proporção e ganhar as ruas dessa forma. Desde o aeroporto até chegar aqui (Cinemateca Capitólio), é Lunga o tempo inteiro. Me deixa orgulhoso.
E isso não te incomoda?
Não, pelo contrário, tenho muito orgulho desse projeto. É uma oportunidade preciosa, em especial, para poder me colocar em outro lugar enquanto artista. No caso, não ser enxergado apenas como artista de papéis LGBT+, embora Lunga seja um papel queer, mas ele consegue promover uma outra imagem do Silvero. Os convites que tenho recebido agora para o audiovisual também tem surgido fora do universo LGBT+. Acho que Lunga foi um presente muito precioso para me colocar em outro lugar no mercado de trabalho.
Quais são seus próximos projetos?
Acabei de fazer um filme que se chama De Repente Drag, no Maranhão, no qual interpreto um heterossexual casado com dois filhos, mas que trabalha como drag queen. Foi uma produção maranhense encabeçada por mulheres, 70% da produção era feminina. Meus próximos projetos não têm a ver com a temática LGBT+, dois são para o streaming e dois para o cinema. Em todos eles não faço personagens que tenham a ver com a caricatura que as pessoas acham que eu vá interpretar por conta da minha história no teatro e na televisão.
Antes do Lunga, Nonato foi outro personagem que transformou sua vida. Como foi esse período?
Eu me considerava uma pessoa bem privilegiada dentro do teatro porque conseguia alcançar muita gente e viajar quase todo o Brasil com as minha peças. Mas isso não se compara com o que a televisão é capaz de alcançar. As pessoas passaram a conhecer e a entender mais o artista que eu sou através do trabalho de A Força do Querer.
Você acha que TV avançou na representatividade LGBT+ nas novelas?
Sim! Isso se viu muito nos últimos três anos. Em especial, A Força do Querer é uma novela que deu esse boom nessas preocupações. Depois, nenhuma novela foi feita sem ter uma figura LGBT+. E agora lutando pelas mulheres trans na televisão, tendo esse lugar de empregabilidade. No Domingão do Faustão, no Melhores do Ano, é a primeira vez que temos duas mulheres trans indicadas ao prêmio (Nany People e Glamour Garcia). Acho que avançamos bastante ao que se refere à televisão.
Para você, que Brasil é retratado em Bacurau? Uma utopia? Um futuro próximo?
Acho que é uma utopia e uma distopia do que o Brasil pode ser. É muito interessante pensar que as pessoas identificam aquela comunidade como um país ideal, onde as questões religiosas, afetivas e econômicas não fazem diferença nenhuma para o convívio entre aquelas pessoas. O único problema daquela comunidade é o sistema político. Acho que isso é muito claro no que vivemos no Brasil hoje. A grande catarse de Bacurau acontece nesse lugar da identificação, quando as pessoas assistem ao filme e percebem uma relação direta com o que a gente vive. É um roteiro de 2009, mas produzido e realizado recentemente. É uma ideia pensada há 10 anos. Não é especificadamente um Brasil de agora, mas sim um Brasil de sempre. No interior, na raiz, sempre foi coronelista, clientelista e nepotista. De um sistema político bem difícil.
No Festival de Cannes deste ano, na exibição de Bacurau, você surgiu no tapete vermelho como Gisele Almodóvar. Como surgiu essa ideia de aparecer montada?
Tive a oportunidade de aparecer para o mundo como um protesto para tudo o que as pessoas diziam que não posso ser. Desde pequeno eu não podia colocar toalha na cabeça achando que era cabelo. Não podia colocar um vestido porque diziam que isso não era coisa de homem. Então, tive a oportunidade e o empoderamento de dizer para as pessoas como quero ir, me vestir, que tipo de pessoa eu sou. Foi muito significativo para mim, pois me colocou como um artista desconhecido para o mercado internacional, virou um holofote para aquela imprensa. Se eu tivesse atravessado o red carpet de smoking de pinguim, talvez eu teria sido só mais um no meio daquela multidão. Consegui trazer um foco para mim e para as discussões de diversidade e gênero no Brasil.
Como a Gisele apareceu na sua vida?
Ela surgiu em 2002, quando montei minha primeira peça sobre universo T (travestis, transexuais e transformistas) através de um conto do Caio Fernando Abreu, A Dama da Noite, e de experiências de conviver com travestis e transformistas. Essas histórias foram se misturando e fui montando essa peça. Essa montagem deu origem ao coletivo As Travestidas, que veio a Porto Alegre com o espetáculo BR-Trans. Hoje a Gisele é um alter ego, como seria o Carlitos para o Charlie Chaplin.
Como você descreve a Gisele?
É uma mulher audaciosa, destemida, bela e sensual. Ela sabe como se vestir, como se maquiar, como falar e acredita muito no poder feminino. Filha de Gisele Bündchen com Pedro Almodóvar. Dois pais maravilhosos (risos). Sabia que em Cannes Almodóvar estaria lá, e a minha maior luta era conhecer "papai".
Aconteceu esse encontro?
Infelizmente não. Estávamos em um restaurante e aí saí para comprar algo na farmácia. Segundos depois Almodóvar passou pelo restaurante. Quando voltei, ele não estava mais.
Nos últimos tempos, alguns grupos têm demonstrado certa hostilidade aos artistas aqui no Brasil, relacionando-os como beneficiários da Lei Rouanet. Como você enquanto artista percebe esse fenômeno?
Você não pode culpabilizar os artistas pelas questões sociais. Não dá para culpar a arte. É um lugar para questionar e provocar. É muito importante que a gente fomente os espaços artísticos, pois talvez seja o único lugar que não tenha sido infectado por esse sistema político que destrói a possibilidade de abrir as cabeças sobre outros lugares de igualdade e horizontalidade. São lugares que podemos alcançar enquanto democracia.
O atual governo que já se manifestou contra o incentivo às produções LGBT+. Como é trabalhar nesse cenário?
É um governo atrasado. Que tenta se estabelecer dentro de um progresso que já se criou. Quando vim para Porto Alegre, em 2012, a situação era completamente diferente da que temos hoje. De lá para cá, os reconhecimentos e a reeducação sobre diversidade e gênero são direitos adquiridos. Não podemos mais voltar atrás a partir do momento que tomamos consciência desses direitos. Não podemos permitir que sejamos aniquilados. Bacurau também tem uma responsabilidade sobre isso quando se diz que as pessoas no filme são violentas. Não, elas só são violentas porque foram obrigadas a isso, senão elas seriam aniquiladas. Acho que nossa comunidade LGBT+ tem que lutar para não ser aniquilada. O que significa combater e ir a luta também contra esse governo para provar nossa existência.
Ouça a entrevista de Silvero Pereira no Timeline desta sexta-feira (22):