O dia é ensolarado, mas as árvores da mata fechada do Parque Saint Hilaire, no limite entre Viamão e Porto Alegre, não deixam que o sol chegue até uma turma de sete estudantes e uma professora. Sob as sombras da vegetação nativa, eles observam uma das 50 nascentes do Arroio Dilúvio, que estão distribuídas pelos 1.180 hectares da reserva. A educadora indaga:
— O que tem na água de casa que não tem aqui?
— Cloro... – responde timidamente uma aluna.
— Que mais? – insiste a professora.
— Açúcar! – arrisca outro estudante, arrancando risadas da turma.
Poderia se tratar de mais um passeio escolar ao parque, mas é uma cena filmada para o médiametragem Dilúvio, dirigido por Gustavo Spolidoro. Tão natural quanto a luz do dia bloqueada pelas árvores da mata, o diálogo não estava em nenhum roteiro e foi inteiramente improvisado.
Projeto da Okna Produções em parceria com a Braskem, o filme tem como objetivo apresentar a trajetória do Arroio Dilúvio – desde suas nascentes, no Parque Saint Hilaire, até a sua foz no Guaíba. Direcionado ao público infantojuvenil, é uma produção com viés educativo para falar sobre sustentabilidade. Tanto que a primeira exibição está prevista para o início de dezembro, no lançamento da chamada pública que o evento Virada Sustentável promove para a organização da programação de 2020. Segundo Aletéia Selonk, produtora e fundadora da Okna, a inspiração para o projeto veio do Atlas Ambiental de Porto Alegre, coordenado pelo professor da UFRGS Rualdo Menegat.
— É uma publicação que adoro. Acho superinteressante de ver aqueles dados, divididos por blocos de uma maneira bem didática, como água, rocha etc. Apresentei ao Gustavo Spolidoro. A partir daí, ele começou a criar. Optou por iniciar pela água, pelo Dilúvio e por inserir crianças na tela. Uma coisa foi desenrolando a outra. O ponto de partida foi essa provocação – explica Aletéia.
Linguagem
Spolidoro conta que se interessou em retratar o Arroio Dilúvio por se tratar de um elemento bastante presente no cotidiano de Porto Alegre. No entanto, ele tinha a preocupação de não fazer um filme extremamente didático.
— Se fizéssemos algo muito didático, quando passar na escola as crianças vão dormir. Buscamos fazer algo que una o didático com o divertido — ressalta.
Autor de produções como a série infantil Ernesto, O Exterminador de Seres Monstruosos e de longas como Ainda Orangotangos (2007) e Morro do Céu (2009), Spolidoro procurou utilizar a linguagem de um documentário observativo para guiar uma aula ficcional em Dilúvio. A professora é interpretada pela atriz Larissa Sanguiné. Ela apresenta informações sobre o arroio e responde às dúvidas dos alunos. Para se tornar uma professora convincente, muito estudo.
O diretor conta que visitou 10 lugares, como os departamentos municipais de Água e Esgotos (Dmae) e de Limpeza Urbana (DMLU) e conversou com especialistas para colher informações.
— Preparamos um PowerPoint com uns 20 slides para mostrar a Larissa tudo que aprendemos (risos). Às vezes, ela está falando alguma coisa, eu só digo uma palavra e ela já lembra o que é.
Nas filmagens que a reportagem acompanhou, Larissa fala como uma especialista no assunto. Vez ou outra, Spolidoro sopra uma palavra ou orienta uma abordagem aos alunos.
— Fico improvisando com essas informações e com as perguntas que os alunos me fazem — pontua a atriz.
Spolidoro entende que a diretora dentro do set, de certa forma, é Larissa:
— Se fosse um documentário tradicional, a Larissa me representaria. Ela fala o que eu gostaria de falar ou questionar.
Escoteiros estreiam com entrosamento
Com idade entre 12 e 14 anos, a turminha de sete alunos do filme Dilúvio é formada inteiramente por escoteiros do Grupo Tupancy, do colégio Rosário.
— Fomos ver as locações e percebemos que teríamos que andar no meio do mato, para o qual eu não ia levar crianças que não estivessem acostumadas. Quem está acostumado? Escoteiro. Minha filha (Aimée Goulart), que está no filme, é escoteira — destaca Spolidoro.
Estreando diante das câmeras, a turma de pré-adolescentes demonstrava desenvoltura, fazendo perguntas e sendo participativa na “aula”, sem deixar espaço para vácuos. Por integrarem o mesmo grupo de escoteiros e já se conhecerem, sentiam-se à vontade.
— Isso faz diferença nas relações pessoais e interpessoais deles. Acho que é um grupo bem interessado — aponta a atriz Larissa Sanguiné.
Spolidoro complementa:
— Como estão acostumados a entrar no mato, a serem curiosos, como eles desenvolvem as perguntas e já se conhecem, é muito mais fácil a interação. Eles cantam, brincam e se divertem. Esquecem que a gente está ali.
Foi a primeira e única diária com os jovens atores, realizada na última quarta-feira. Do Parque Saint Hilaire, seguiriam para a represa na Lomba do Sabão, depois o campus da UFRGS, a Ecobarreira (que retém o lixo no curso do Dilúvio) e, por fim, a beira do Guaíba. Entre uma cena e outra, era possível observar um clima de empolgação e brincadeiras.
— Tudo mundo se conhece. O entrosamento é muito bom, parece que a gente está em uma atividade no escotismo – disse João Bahima, 14 anos, um dos atores.
Para Luca Castagnino, 12 anos, o mote de Dilúvio é interessante para mostrar a atual situação do arroio:
— Também é uma ideia legal, pois a gente pode se sentir livre, agir do nosso jeito, sem precisar seguir uma linha (na interpretação). Podemos ser quem a gente é.
Documental
O escoteiro Francisco Almeida, 12 anos, refletiu:
— Poucas pessoas têm a oportunidade de vir a esse lugar e aprender essas coisas. Vivemos numa sociedade predominantemente urbana.
Sofia Éboli, 12 anos, era uma das poucas pessoas do grupo com algum contato com atuação, além de Aimée Goulart, filha do diretor. No entanto, participar de uma filmagem era algo novo:
— Já fiz peça no colégio, mas é uma experiência diferente a gente falar e não poder olhar diretamente para uma câmera.
Quando questionada sobre as curiosidades que os alunos perguntam para a professora no filme, Sofia foi categórica:
— É natural, mesmo. Deu na telha, a gente pergunta.
Em uma pausa para o almoço, em meio a doces e guloseimas, o repórter questionou os sete atores escoteiros sobre a maior dificuldade que sentiam em cena. Todos responderam juntos, em coro:
— Não olhar para a câmera!
Para Spolidoro, a turma estava superando suas dificuldades na base do entrosamento:
— Tinha muita gente observando, como se fosse teatro. Indiquei qual seria a pauta, o que a Larissa falaria e a história fluiu. Essa intimidade deles faz isso. É difícil para quem não está acostumado a atuar. A ideia é essa, é um registro documental que estamos fazendo. Eles são eles mesmos.