Num lugar não nomeado do interior do Brasil, a Casa da Gringa é um prostíbulo em que atendem mulheres acolhidas em momentos diversos pela proprietária, a "Gringa" (a espanhola Carmen Maura), hoje idosa, cega e senil. Ao redor dela, distribuem-se as trabalhadoras da casa, entre elas a romântica Madalena (Carol Castro), a cínica Jerusa (Danielle Winits) e a pragmática Rita (Dira Paes), provável herdeira da Gringa como chefe do local. Também trafega por ali Tonho (Eduardo Moscovis), homem que foi criado no bordel e faz serviços ocasionais para a casa, pagos por sexo com alguma das moças.
Até a metade, esse é o cenário básico de Veneza, segundo longa-metragem dirigido por Miguel Falabella, exibido na noite de quinta-feira (22) como competidor na mostra de longas nacionais na 47ª edição do Festival de Cinema de Gramado. Perpassa esse primeiro arco da narrativa um dilema apresentado por Gringa à sua "família": em seus devaneios oscilantes entre seu passado e seu presente, ela faz Rita e Tonho prometerem que a levarão a Veneza, onde ela crê que a espera um amor do passado, um italiano chamado Giacomo (Magno Bandarz), a quem ela conheceu em sua juventude na Argentina (quando a personagem é vivida pela também espanhola Macarena García).
Dada a precariedade do bordel e a pobreza de todos que nele moram, a empreitada é praticamente impossível, até que Tonho tem uma ideia que desenrolará a segunda metade do filme, em que a atmosfera da narrativa eleva um já presente elemento onírico até um desfecho de fantasia lírica.
Adaptado pelo próprio Falabella de um esquete teatral de 35 minutos escrito pelo professor universitário argentino Jorge Accame, o roteiro de Veneza já havia sido encenado como peça teatral a partir de 2003. No debate que se seguiu ao filme, na manhã de sexta-feira (23), Falabella contou que passou anos tentando viabilizar o projeto deste seu segundo longa, mas teve dificuldades devido à diferença do que se espera de sua persona pública como ator.
— Esse é um filme cujo ritmo se deve muito à minha formação literária e cinematográfica. Minha formação é em letras, mas depois eu fui para a televisão. E venho lutando nos últimos 10 anos para sair dessa prateleira. É difícil porque as pessoas te colocam numa prateleira e não querem que você saia dela. Eu fiquei 10 anos brigando para fazer Veneza e as pessoas ficavam me perguntando: "mas não é uma comédia?", "por que não é uma chanchada?" E eu dizia: "não, isso é o meu trabalho na TV. No teatro meu trabalho é diferente, no cinema vai ser também" — contou o ator, que acrescentou que só conseguiu viabilizar o longa após aceitar fazer o filme da comédia televisiva Sai de Baixo.
— Sei lá por que eles acharam que aquilo ia dar certo — brincou.
Visualmente bem acabado, com uma fotografia que ressalta seu caráter onírico, Veneza é um filme belo com uma temática delicada narrada em tom de fábula. O que não o livra de ter alguns problemas sérios de tratamento. O retrato das prostitutas muitas vezes desliza de um enfoque humano para o velho clichê paternalista da "puta de bom coração", por exemplo, e por vezes naturaliza de modo ligeiro rompantes de agressividade de Tonho contra as mulheres que ele considera "sua família". E, talvez por ter que encarar um portunhol como idioma de interpretação, a diva Carmen Maura não está em seu melhor momento. Mas Dira Paes confirma seu caráter de selo de qualidade no cinema nacional, com uma interpretação na medida.