Um dos grandes textos sobre a incerteza em tempos de exceção já escrito em qualquer idioma é A Dor, obra tardia de Marguerite Duras (1914-1996), publicada nos anos 1980 com base em suas memórias dos últimos meses da Segunda Guerra. Com 30 anos em 1944, ela participava da resistência francesa contra a ocupação nazista, ao lado do marido Robert Anthelme. Denunciado por um traidor, Anthelme foi preso pelas forças de ocupação e passou meses aparentemente desaparecido. Ao tentar obter informações de seu marido, ela passa a ser alvo da atenção insistente de um policial colaboracionista que a mantém constantemente em suspense sobre o destino de seu marido como forma de prolongar seu contato com a bela escritora.
É essa experiência de luto e desespero vivida no fio da navalha que Duras reconstitui no misto de memória e ficção que é A Dor, adaptado para o cinema em Memórias da Dor, produção francesa em cartaz no Cine Guion, na Capital.
Memórias da Dor segue os passos de Marguerite (Mélanie Thierry) a partir de 1944, quando Robert (Emmanuel Bourdieu), seu marido, cai nas mãos da polícia. Ambos são integrantes de um grupo liderado por um dos mais ativos membros da resistência, o guerrilheiro conhecido como "Morlan" (Grégoire Leprince-Ringuet), pseudônimo de François Mitterrand, que mais tarde seria presidente francês.
Robert é, assim, uma presa cobiçada, o que fica claro quando, ao tentar saber notícias de seu paradeiro, Marguerite vira alvo da atenção do policial Pierre Radier (Benoît Magimel, visto recentemente em oposição a Gérard Depardieu na série Marseille), um dos responsáveis pela prisão de Robert. Um livro de Marguerite, escritora já publicada na época, foi encontrado no refúgio de Robert, e Radier insiste em discutir o caso com a autora em um encontro privado em um café. Ora parecendo acreditar na inocência da escritora e mais interessado em fazer uma corte romântica, ora um insistente interrogador em um jogo de gato e rato, Radier força novos encontros oferecendo a cada vez migalhas de informações sobre Robert e seu paradeiro.
Filme de guerra sobre desespero, não combates
Diretor de estilo clássico e contido, que começou a carreira como assistente do grande autor polonês Krzysztof Kieslowski, Finkiel toma decisões elegantes mas pouco arriscadas na transposição do livro para a tela. Para começar, uma narração em off que tenta preservar a visceralidade e a poesia da obra original, mas às vezes destoa um tanto da forma acadêmica com que boa parte da história é conduzida.
Há momentos, contudo, de grande brilho. O maior deles a interpretação cheia de matizes de Mélanie Thierry (que já havia trabalhado com Finkiel em Não Sou um Canalha, de 2015). Com seu belo rosto de uma expressividade penetrante, ela conduz a narrativa com olhares e ricos silêncios que deixam entrever sob a superfície as nuanças perigosas de sua aproximação com um policial a serviço dos alemães cujas intenções nunca ficam plenamente claras.
Em um dos recursos inspirados do filme, muitas vezes a atriz é duplicada em tela, como se observasse de fora suas ações: atender ao telefone para marcar um encontro com o colaboracionista ou arrumar-se para ir ver o homem que diz ter o destino de seu marido nas mãos. Com o fim da guerra se aproximando e o poderio nazista se desfazendo a olhos vistos, não demora para a situação estar em vias de se inverter e talvez Marguerite seja a executora de uma fulminante sentença de morte para Radier nas mãos da Resistência.
Não há que se confundir, no entanto, Memórias da Dor com um filme de espionagem. O foco é a espera, o desespero mudo e sem notícias de uma mulher com um ente querido desaparecido na máquina desumanizadora da burocracia nazista. A relação com Radier é apenas parte de um filme que, na verdade, aborda duas dores: a da ausência de Robert e de seu retorno ao fim da guerra, uma sombra famélica e degradada que terá de lutar para se reconciliar não com sua esposa, mas com toda a humanidade.