No início do século 20, com filmes como Cidade de Deus (Fernando Meirelles, 2002), o cinema brasileiro se aproximou da favela repleto de filtros fotográficos e outros elementos de mediação responsáveis por uma estetização glamourizante. Com Baronesa (Juliana Antunes, 2017), chega ao ápice uma tendência que, em caminho oposto, registra as periferias das grandes cidades do país a partir de um realismo calcado em fotografia e interpretações naturalistas e, com isso, uma crueza ao mesmo tempo estranha e familiar ao espectador, impactante justamente pela maneira naturalizada (ordinária) com que examina situações graves (extraordinárias).
Vencedor do Festival de Tiradentes do ano passado, o filme que estreia nesta quinta-feira (14/6) no CineBancários e na Cinemateca Paulo Amorim, em Porto Alegre, tem pouco mais de uma hora de duração, durante a qual acompanha a rotina de duas mulheres que vivem sozinhas com suas crianças em uma favela da Grande Belo Horizonte (polo irradiador daquele que talvez seja o melhor cinema nacional da atualidade). As atrizes – e também as personagens que elas interpretam – se chamam Andreia Pereira de Sousa e Leidiane Ferreira. Representam um raro ponto de vista feminino no cotidiano das regiões conflagradas pelo tráfico. Porém, de maneira um tanto distanciada daquele clichê dramatúrgico constituído pelos retratos da vida doméstica à margem da guerra. Andreia e Leidiane são elas próprias soldadas em árdua luta pela sobrevivência – sua e de seus filhos.
Felipe Rangel dos Santos as visita. Flerta com ambas, mas não o suficiente para convencê-las de qualquer coisa – o controle da situação, a cineasta estreante ressalta a cada sequência do filme, está com elas. Não faz sentido, no entanto, pensar apenas e simplesmente em empoderamento, este novo clichê redutor e tão acessível aos filmes, às músicas e às encenações mais rasas. Baronesa é tão rico em sua construção que parece um filme modelar de diversos aspectos das relações contemporâneas, da desassistência social à sexualização precoce, da desordem urbanística à ausência da figura masculina nos lares brasileiros.
E tudo constituído a partir de planos longos e de detalhes, que flagram os diálogos com o tempo adequado para que se depreenda essa complexidade e se intensifiquem as imagens representativas desse contexto. A câmera muitas vezes fixa observa as mulheres com essa generosidade de tempo, quase uma reverência às suas figuras. Quando sai delas e mira as crianças, captura expressões sugestivas de como estas recebem o que ouvem, aí incluídas algumas barbaridades. Nesses casos, não há como não se deixar tocar pelo seu olhar.
O que impressiona particularmente são as atuações das duas protagonistas. Muito embora essa vertente realista do cinema brasileiro afirmada no novo século esteja bastante difundida, e a recorrência dos atores e atrizes inexperientes, cada vez maior, não é comum encontrar tamanha profundidade no registro naturalista quanto se vê em Baronesa.
As duas curtem a diversão possível, são responsáveis mas às vezes inconsequentes. E sonham. Uma com a volta do marido da prisão, outra com a mudança para uma favela menos violenta, chamada Baronesa – o que dá ambiguidade ao título do filme, à medida que a mesma palavra também poderia descrever a condição delas próprias. As sequências finais vão esclarecer melhor o que o nome sugere, ou ao menos o seu significados mais óbvio, contudo, recomenda-se assistir sem atrelar-se a quaisquer significados redutores. Baronesa é muita coisa ao mesmo tempo. Um dos melhores filmes brasileiros dos últimos anos.
BARONESA
De Juliana Antunes
Drama, Brasil, 2017, 73min, 16 anos.
Estreia nesta quinta-feira (14/6) no CineBancários e na Cinemateca Paulo Amorim, em Porto Alegre.
Cotação: excelente.