Os road movies contam histórias, essencialmente, de transformação. No cinema, pegar a estrada costuma ser um ato simbólico de mudança interna para os personagens. Ella e John, que entra em cartaz nesta quinta-feira no circuito depois de duas semanas com sessões de pré-estreia, leva esse princípio a um paroxismo, ao mesmo tempo questionando-o: no filme baseado no romance de Michael Zadoorian, quem parte em busca de renovação é... um casal de idosos.
Eles têm um trailer velho, batizado de Caça-Lazer (título original do filme, The Leisure Seeker), com o qual muito viajaram em sua juventude. John, interpretado por Donald Sutherland (que venceu um Oscar honorário neste ano – o que de algum modo compensa sua não indicação ao prêmio), é um professor de Literatura apaixonado por Hemingway. Menos sofisticada, originária do sul dos EUA, Ella (vivida pela britânica Helen Mirren, também em grande atuação) é quem o leva, da fria Massachusetts à quente Flórida, para finalmente conhecer a célebre casa de Key West na qual o autor de O Velho e o Mar viveu.
John sofre de Alzheimer, informação que o espectador recebe não sem antes estranhar seu comportamento vacilante no início da trama. Ella quer um momento final de consciência, o que faz apelando à memória do marido: todas as noites, quando eles param o veículo nos campings à beira da estrada, a mulher projeta fotos antigas da família em um velho retroprojetor de slides.
Como um todo, os belos momentos de lembranças (que incluem um trecho no qual cantam Me and Bobby McGee, de Janis Joplin) são capazes de emocionar o público. Mas há outros de pura diversão (a carona com o motoqueiro, o assalto frustrado), que escancaram a filiação de Ella e John às comédias dramáticas agridoces a la Elsa e Fred, filme argentino de Marcos Carnevale lançado em 2005 e refilmado nos EUA em 2014.
Nada a ver, portanto, com Capital Humano (2013), o bom drama social que o cineasta italiano Paolo Virzì realizara antes de Ella e John – e que o levou a Hollywood para, aos 54 anos, dirigir este que é seu primeiro longa em língua inglesa. Mas não se engane: há comentários políticos em seu novo filme (John, um democrata convicto ao longo de toda a vida, mostra-se simpático a um movimento pró-Trump justamente ao ter Alzheimer) e há, além disso, uma reviravolta final digna dos títulos mais contundentes e implacáveis sobre o definhamento da velhice – entre os quais Longe Dela (2006), de Sarah Polley, e principalmente Amor (2012), de Michael Haneke.
Em certos momentos, essas variações de tom só não constituem um problema devido ao carisma dos dois atores, capazes de segurar alguns exageros – cômicos ou dramáticos – do roteiro assinado por Virzì, Stephen Amidon, Francesca Archibugi e Francesco Piccolo. Quando Helen Mirren e Donald Sutherland não estão em cena, e quem preenche a tela são seus filhos preocupados (interpretados por Christian McKay e Janel Moloney), o filme patina – a histeria do personagem de McKay com o que julga ser uma irresponsabilidade dos pais é particularmente difícil de engolir.
Mas a jovem dupla cumpre papel importante para que o espectador entenda aquela estrutura familiar. Há tensões advindas das diferenças entre o casal protagonista que respingam nas escolhas e no próprio comportamento dos filhos. Preste atenção, por exemplo, em como alguns de seus atos sugerem que eles não querem ser como os seus pais – mas, em outros, demonstram ser iguais a eles.
Essas conexões estão sugeridas pelo apelo à memória que perpassa toda a trama de Ella e John. Trata-se de um filme sobre o ato de lembrar, ou, como o final vai deixar ainda mais claro, sobre a tragédia que é se ver incapaz disso. E, consequentemente, de vivenciar as transformações que esse ato pode proporcionar. As mesmas transformações que constituem uma característica fundamental dos road movies.
ELLA E JOHN
De Paolo Virzì
Comédia dramática, EUA, 2017, 112min.
Estreia nesta quinta-feira no circuito de cinemas.
Cotação: bom.