A sina é recorrente na trajetória de jovens artistas que alcançam a fama e a fortuna carregando sobre os ombros o desajuste social e o desconforto existencial. Janis Joplin cumpriu este destino. Lançou o primeiro de seus quatro discos de estúdio em 1967 e morreu de overdose de heroína em 1970, aos 27 anos, logo após a gravação de Pearl, lançado no ano seguinte e consagrado como o maior sucesso comercial da cantora americana que é uma das mais brilhantes e fugazes estrelas da música pop.
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Janis: Little girl blue, documentário em cartaz em Porto Alegre, ressalta diferenças que colocam Janis Joplin acima de qualquer comparação com as artistas que vieram depois dela – como, por exemplo, a inglesa Amy Winehouse, que também saiu de cena aos 27 anos derrubada por seus excessos. Porque, ressalta a diretora Amy J. Berg, a texana Janis foi uma pioneira no protagonismo das mulheres no universo do rock, até então dominado pelos homens. O documentário lembra ainda que o estandarte do que hoje se chama "empoderamento feminino" já era erguido por Janis em questões como direitos civis e livre-arbítrio sobre seu corpo.
O filme combina uma fartura de material garimpado em arquivos pessoais e depoimentos atuais de amigos, familiares e músicos, que iluminam a vida, a obra e o legado de Janis. Esse perfil é desenhado pela própria cantora, por meio das cartas e diários nos quais descrevia sua inadequação para a vida confortável que tinha no interior do Texas com o pai engenheiro mecânico, a mãe e o irmão e a irmã caçulas. Quando comemorou seus 27 anos, Janis, já rica e famosa, escreveu aos pais, com quem sempre manteve uma relação afetuosa, sobre uma ambição sua ainda não realizada: "ser amada".
Adolescente que não se enquadrava nos padrões de beleza reverenciados pelos garotos, Janis canalizou o isolamento e a hostilidade na escola e na faculdade em sua paixão pela música negra americana – idolatrava nomes como Odetta e Otis Redding – e pelo folk de raiz. Saiu de casa para cantar em bares de Austin, viu que era isso que queria fazer na vida e desembarcou em San Francisco, em 1963. A cidade onde germinava a psicodelia e a contracultura que moldaram a música e o comportamento da era hippie colocou a garota em contato com as drogas pesadas. Janis sentiu o baque e voltou para o Texas, mas percebeu que só teria um carreira se voltasse para o epicentro da revolução sonora que se desenhava na Califórnia.
Outra vez em San Francisco, seu caminho cruzou com o do grupo Big Brother and the Holding Company, do qual se tornou vocalista. A banda lançou com ela o disco homônimo, de 1967, e o antológico Cheap thrills (1968), este com duas releituras de standards que a voz potente e rasgada de Janis tornoria icônicas: Summertime e Ball and chain, blues que ilustrou um ponto de virada na sua carreira: a visceral performance no Festival de Monterey, em junho de 1967.
Seguiu-se então um turbilhão físico e emocional. A tensão que seu protagonismo começa a despertar no grupo combinado com certa pressão da gravadora estimularam Janis a partir para a carreira solo. Gravou com uma nova banda o LP I got dem ol' kozmic blues again mama! (1969), escreveu seu nome na mitologia do Festival de Woodstock e correu o mundo em turnês.
O conforto que a cantora buscava na heroína começou a cobrar seu preço. Janis começou seu último ano de sua vida no Brasil, no verão de 1970, onde deu início a um processo de desintoxicação e encontrou um novo amor, um viajante americano que conheceu na praia – o filme não faz referência ao cantor brasileiro Serguei, que diz ter se enroscado em um affair com Janis à época. O bom astral e a tranquilidade encontrada nos trópicos – ela passeou também pelo Nordeste – ajudaram Janis a entrar no estúdio para gravar Pearl no auge de sua forma física e vocal. Nesse disco ela registrou sucessos como Me and Bobby McGee e Mercedes-Benz. Nesse meio tempo, sua nova paixão se foi para a África.
São muito impactantes no documentário sequências dos ensaios e gravações de faixas como Summertime e Me and Bobby McGee e os bastidores dos históricos festivais de Monterrey e Woodstock. Mas o interessante na abordagem de Janis: Little girl blue é deixar a música em plano mais secundário para iluminar a personagem por seus conflitos mais íntimos e dolorosos alheios aos fãs.
Amigos atribuem a fatal overdose de Janis no quarto de um hotel, em 4 de outubro, a um trágico acidente de percurso, uma recaída estimulada pela crônica solidão de quem era adorada por multidões.
Cinebiografia segue empacada
A primeira cinebiografia de Janis Joplin é uma novela que volta e meia ameaça sair do papel, mas empaca e retorna ao ponto de partida. Em 2006, foi a anunciada a produção do filme, com a cantora Pink e a atriz Zooey Deschanel cotadas para o papel de Janis.
À mesma época, especulou-se outra produção, com Renée Zellweger. Nenhuma delas foi adiante.
O projeto mais consistente chama-se Janis Joplin: Get it while you can, e o primeiro diretor a ele associado, em 2010, foi Fernando Meirelles. O brasileiro não gostou do roteiro e pediu para o colega José Eduardo Belmonte fazer outro tratamento, que, por sua vez, não foi aprovado pelos produtores. Em 2014, a ideia foi retomada, associada a Lee Daniels (Preciosa) e, depois, a Jean-Marc Vallee (Clube de Compras Dallas). Amy Adams foi confirmada como a protagonista. No ano passado, o projeto foi interrompido devido a uma disputa judicial entre os estúdios que bancariam o filme e o autor do roteiro finalmente aprovado.
Assim, o mais próximo que se tem de uma cinebiografia de Janis Joplin é A rosa (1979), que valeu a Bette Midler a indicação ao Oscar de melhor atriz. Por não ser um projeto autorizado pela família da cantora, algumas liberdades foram tomadas, e o nome da diva roqueira foi alterado para Mary Rose Foster.
JANIS: LITTLE GIRL BLUE
De Amy J. Berg.
Documentário, EUA, 2015, 107min, 14 anos.
Em cartaz na Sala Paulo Amorim (19h30) e no Espaço Itaú (17h40 e 21h30).
Cotação: muito bom.