Realizar há nove anos, de forma ininterrupta, um festival de cinema em Bagé, cidade fronteiriça e a 377 quilômetros distante de Porto Alegre onde eventos culturais desse porte são rarafeitos é uma façanha. E ao longo desses anos, o Festival Internacional de Cinema da Fronteira conseguiu muito mais do que ser um acontecimento paroquial. Tornou-se um nacionalmente reconhecido fórum de projeção do cinema autoral brasileiro combinando à excelência da programação o envolvimento da comunidade da região em atividades gratuitas.
A edição 2017 do Festival da Fronteira será realizada de quarta-feira (15) a domingo (19), no Centro Histórico Vila de Santa Thereza (Av. Visconde Ribeiro de Magalhães). Abriga uma mostra competitiva nacional de longas-metragens, duas de curtas, em sessões comentadas com os realizadores, além oficinas, debates e shows musicais.
– É um trabalho todo voluntário, realizado por pessoas ligadas ao circuito universitário e outras instituições da cidade. Não temos recursos via leis de incentivo. Contamos com o patrocínio da DAEB (Departamento de Água e Esgotos de Bagé), que nos ajuda com as passagens para os convidados, e a sensibilidade dos realizadores, que sabem que não receberão nada em razão da gratuidade total do evento, característica que acaba fazendo com que o festival mobilize toda a região. É um festival anti-tapete vermelho – diz o bageense Zeca Brito, cineasta e responsável pela curadoria do festival com o diretor Frederico Ruas e a jornalista luso-moçambicana Carla Henriques.
Brito envolveu-se na realização do evento desse ano em meio aos compromissos com três longas-metragens que assina. Circulou por festivais com a ficção juvenil Em 97 Era Assim e o documentário A Vida Extra-ordinária de Tarso de Castro, codirigido com Leo Garcia, e as filmagens do épico histórico Legalidade, em fase de finalização.
– Foi uma correria, mas o bacana é que participar dos principais festivais do Brasil permite os contatos para trazer a Bagé filmes bem importantes dentro da nossa proposta – explica Zeca. – Os 10 longas da competição, selecionados entre 35 inscritos, representam a reflexão sobre a linguagem cinematográfica, abordam temas contemporâneos como política, religião, racismo, autoritarismo, falam de suicídio, destacam a metalinguagem no processo de fazer cinema. São títulos que estimulam um bom debate.
Duas produções gaúchas estão na mostra de longas: Bio, de Carlos Gerbase, e Yonlu, de Hique Montanari, que abre a programação, na primeira sessão pública no Estado, após receber o prêmio Abraccine de melhor filme brasileiro de diretor estreante na recente Mostra Internacional de São Paulo – seu protagonista, o ator Thalles Cabral, e o realizador estarão presentes na sessão. Outros destaques da mostra são os documentários A Terceira Margem, de Fabian Remy, eleito o melhor longa nacional do festival É Tudo Verdade, e Quem é Bárbara Virgínia?, sobre a primeira diretora de cinema em língua portuguesa.
Os homenageados deste ano são o crítico de cinema paulista Cid Nader (1958-2017), curador do festival durante cinco anos, e a escritora e jornalista bageense Edy Lima.
– A Edy é uma figura muito importante para a cultura brasileira. Faz parte da geração do Grupo de Bagé (que reunia, entre outros artistas, nomes como Glauco Rodrigues, Glênio Bianchetti e Danúbio Gonçalves), escreveu um livro infantil de muito sucesso, A Vaca Voadora, e marcou a dramaturgia nacional com a temática feminista na novela Como Salvar Meu Casamento (1979-1980), na TV Tupi – destaca Brito.
Três longas convidados terão sessões no festival: o brasileiro Antes do Fim, de Cristiano Burlan, o espanhol Caminando Juntos, de Rodolfo Montero, e Serviçais, de Nilton Medeiros, única produção do país africano São Tomé e Príncipe em 2017.
A programação musical é eclética, dos tradicionalistas Tiago Cesarino e Augusto Maradona à dupla Frank Jorge e Alexandre Birck, passando pelo som instrumental da brasileira radicada em Buenos Aires Kika Simone.
Longas em competição
Açúcar
De Renata Pinheiro e Sérgio Oliveira – Herdeira de um engenho de açúcar em “fogo morto” resiste em vendê-lo enquanto procura reerguer a própria vida.
Aurora 1964
De Diego Di Niglio – Documentário sobre pessoas que tiveram suas vidas atingidas pelo golpe militar de 1964.
A Terceira Margem
De Fabian Remy – Documentário sobre João Kramura, jovem branco que, em 1953, foi encontrado pelos irmãos Villas-Boas vivendo entre os índios Kaiapós.
Bio
De Carlos Gerbase – Falso documentário sobre um biólogo que viveu entre 1959 e 2070 e tem sua vida reconstituída no futuro por 39 pessoas que conviveram com ele em diferentes momentos, entre familiares e amigos.
Guarnieri
De Francisco Guarnieri - A trajetória do ator italiano Gianfrancesco Guarnieri (1934–2006), avô do diretor, grande nome da dramaturgia brasileira conhecido também por seu engajamento político.
Histórias que nosso cinema (não) contava
De Fernanda Pessoa – O documentário revê o Brasil do anos 1970 por meio de filmes da pornochanchada.
Homem Livre
Alvaro Furloni – Roqueiro que viveu dias de fama e fortuna passou anos na prisão. Agora, tenta recomeçar a vida em uma igreja evangélica.
Quando o Galo Cantar Pela Terceira Vez Renegarás Tua Mãe
De Aaron Salles Torres – Rapaz esquizofrênico assume lugar do pai como zelador de um prédio, mas seu temperamento o faz entrar em conflito com a mãe.
Quem é Bárbara Virgínia?
De Luísa Sequeira – Documentário sobre Bárbara Virgínia (1923-2015), primeira cineasta portuguesa a realizar um longa e a primeira diretora na competição da estreia do Festival de Cannes, em 1946. Nos anos 1950, ela se mudou para São Paulo e não fez mais filmes.
Yonlu
De Hique Montanari – Drama ficcional baseada na história do adolescente gaúcho que fez uso da internet tanto para divulgar suas criações musicais quanto para cometer suicídio.