Matheus Nachtergaele e Cláudio Assis formam uma das mais intensas parcerias do cinema brasileiro, consolidada nos quatro longas-metragens do diretor pernambucano: Amarelo manga (2002), Baixio das bestas (2006), A febre do rato (2012) e o recente Big jato (2015), em cartaz a partir desta quinta-feira em Porto Alegre.
Em entrevista a Zero Hora, Nachtergaele, paulista de 48 anos, fala sobre o desafio de interpretar dois personagens antagônicos, irmãos que "se complementam e se repelem". O trabalho em Big jato lhe valeu o prêmio de melhor ator no Festival de Brasilia. Ele também antecipa que apresentará no Porto Alegre Em Cena, em setembro, o monólogo em que interpreta poemas de sua mãe, que morreu quando ele era bebê.
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Como foi a experiência de viver dois personagens em Big jato?
Foi minha primeira vez. Sempre fiquei impressionado com quem fazia isso. Você faz o mesmo filme duas vezes sob dois prismas diferentes. Eles são irmãos antagônicos em muitos aspectos e que vão servir de modelo de afeto e rejeição para um menino em formação. Foi rico, intenso e feliz. Em alguns momentos, tive medo de ficar exaurido. O personagem do Velho, talvez o mais intenso, no fundo era o mais amoroso. O Nelson tem a alegria e também o amargo daquele que quase foi livre. Trabalhei com a perspectiva de que fossem o mesmo homem com destinos diferentes. Um deles se casou, teve filhos e limpa fossas. Sustenta a família limpando a merda dos outros. É comovente. E o outro não se casou, não limpa fossas. Nesse processo de construção dos personagens, encontrei pontos de contato entre eles. Fiz primeiro o Nelson, em uma semana. Depois, o Velho, em duas semanas. No último dia, fiz os dois em uma sequência noturna, no prostíbulo. O leilão da prostituta com o Nelson, e a perda da virgindade do menino com o Velho.
Esses personagens refletem a divisão daquele universo agreste entre a liberdade e a repressão, temas que são recorrentes na filmografia de Cláudio Assis, como nos três longas anteriores dele em que você atuou?
O pai e o tio são dois tipos que se complementam e se repelem. O menino é um poeta que é amado por ambos e vai se formar entre eles. Para amadurecer, o menino vai ter de passar por essa curra do trabalho que é limpar fossas. Apesar de o filme ser uma fábula sobre a formação de um menino, com tons menos naturalistas, menos crus do que nos nossos filmes anteriores, o abecedário da linguagem é o mesmo, o tema principal é o mesmo, que é o desejo profundo de libertação do homem simples. Mas que liberdade a gente quer? A de leiloar uma prostituta? A de fumar maconha o tempo todo? Liberdade não é só fazer o que quiser, ser inconsequente. É preciso um mix entre tradição e liberdade. O que é bonito no tradicional tem que ser mantido, como o amor entre as pessoas da família.
Sua amizade e parceria com Cláudio Assis facilitam o trabalho no set?
Conhecer bem o diretor facilita muito. A gente está sempre em um processo para desenvolver o que começamos no Amarelo manga (2002). Mas o que pode parecer conforto se torna desconforto algumas vezes porque o Cláudio cobra muito mais de mim hoje em dia. E eu também espero muito mais do Cláudio como cineasta. Quando vamos para o set, temos a expectativa de descobrirmos coisas juntos. Fizemos um filme de ternura, apesar de ser um filme duro. É o nosso desenvolvimento como artistas. Nosso grito não precisa mais apenas machucar, ferir. A gente pode também encantar, dizer uma coisa séria encantando. Esse é, entre aspas, o "filme infantil" do Cláudio, o filme que eu levaria meu filho para ver. E tem um detalhe bonitinho. O (escritor e dramaturgo) Ariano Suassuna morreu pouco antes de a gente começar a filmar. Eu tinha uma prótese dentária que usei no João Grilo quando fiz O auto da compadecida (minissérie e longa de 1999 e 2000, respectivamente). Não é a original, que ficou com a produção, mas uma prova. Resolvi usá-la no Big jato, e demorou para o Cláudio entender. Ele me perguntou: "Por que você está falando assim? Está tão interessante". Foi minha homenagem oculta – agora não mais porque estou te contando – ao Amarelinho, que continua safado e sobrevivendo por aí.
Você teve uma elogiada estreia como diretor com o longa-metragem A festa da menina morta (2008). Tem planos de realizar um novo filme?
Sim. Tenho um roteiro original bem encaminhado, que poderia rapidamente se tornar matéria para uma produção trabalhar. Mas vou segurar porque estou muito dedicado a meu trabalho como ator e viajando com a minha peça que, daqui a pouco (em setembro), chega ao Porto Alegre Em Cena. Chama-se Processo de conscerto do desejo, conscerto com "sc". É um monólogo com poemas de minha mãe, que morreu quando eu era bebê. Eu canto, falo e danço. Estou amando fazer teatro. Quando um filme entra na sua vida, para você dirigi-lo consome quatro, cinco anos. Tudo fica em segundo plano. E não quero deixar meu trabalho como ator em segundo plano.