Por Stéphane Huchet
Historiador e teórico da arte, docente na UFMG
A exposição de Maria Ivone dos Santos no V744Atelier é um exemplo da capacidade que as imagens têm de se inserir, com todo o peso de sua presença, num contexto espacial ele mesmo a pertencer a um ambiente maior. Três degraus, portanto, que fazem passar a cidade e as imagens umas nas outras, num fluxo de reciprocidade que a galeria encena. Ela é o lugar onde se rearticulam os espaços. A relação de inclusão mútua entre cenas distantes que se encontram na imagem opera por redução e ampliação: à medida que se entra no corredor de acesso no V744, uma multiplicidade de formas, planos, recortes – perímetros, diz Maria Ivone – colocam a fisicalidade artística sob os auspícios da geometria. Maria Ivone sempre trilhou os caminhos da agrimensura: percorrer a cidade ou a paisagem e elaborar signos plásticos sintéticos a partir e com esses dados vitais. Não é um gesto fácil sintetizar a vida em formas e proposições visuais que não cedem nada à relativa informalidade da realidade, sem, contudo, perder sua proximidade.
A “alma” que cabe nessa exposição é a matriz secreta onde a generalidade do mundo e a particularidade da obra de arte se entrelaçam sem se confundir, já que as “especulações” fazem se refletir um no outro o que elas mantêm separado. Essas idas e voltas que as imagens realizam entre uma referência viva e um suporte plástico que o “reflete” não envolve apenas as espacialidades urbanas, arquitetônica e artística que se respondem num contraponto visual formado pelos espelhos apresentados, mas também as dimensões do tempo inerente a todo arquivo. Arquivar pode ser considerado um gesto de tombamento, mas também como o que faz passar no seu lugar de significação-por-vir o que está fadado a desaparecer. É outro modo de agrimensura, já que um arquivo é uma geometria do tempo. A ideia de fazer um arquivo performar é um modo de afirmar que algo do morto permanece no vivo: talvez os espelhos que “registram” as cores, as silhuetas, os fantasmas dos entornos – a alvorada do dia, seu crepúsculo, sua luz zenital, ou o que cega o olhar que olha tanto... –, uma vez suspensos nas paredes brancas, dizem que o registro é também um reflexo, já que a passagem característica do processo fotográfico entre o morto e o vivo é o que aqui se manifesta.
Tem uma intensidade intrínseca da imagem que mostra pouco: a arte do pouco, contraponto à tendência contemporânea de não esconder nada e de se orgulhar de ofuscar a sutileza, faz o arquivo performar porque ele reflete as horas vividas e dá consistência e duração, mesmo que frágil, ao que uma vez existiu antes de se declarar. De-clarar, clarear, dar luz àquilo que o sensível veicula e que os artistas costumam perceber por vocação, é o que dá ao trabalho da Maria Ivone seu volume significante. É absolutamente compreensível que as películas mais finas dos espelhos encontrem em desenhos espaciais geométricos e outros volumes seu eco morfológico: uma dimensão primordial da arte reside na responsabilidade de encontrar a forma. Os espelhos não espelham apenas algum ambiente natural, urbano ou arquitetural, eles constituem também a matriz dos volumes que adensam aquilo que vibra nas imagens planas. E o gesso não engessa; ele libera.
Essencial se mostra o traço definidor, o cerne de que todo interior precisa, o temenos do que se contempla, para retomar raízes linguísticas. Reversão da luz: nas origens da história da arte, um mestre famoso, Vasari, deu as bases para um diagrama que sintetiza o ato artístico, afirmando implicitamente que se trata nele de partir de um primeiro sensível, o do mundo, para chegar num segundo, o da obra, mediante uma operação conceitual que faz o que o artista inventa responder ao que ele escolheu trabalhar da realidade. Os volumes bem afirmativos que Maria Ivone apresenta vêm mostrar como a circulação entre os dois sensíveis não privilegia mais a “abstração” do que o “realismo”, já que, tanto o que mede a terra quanto o que volta para ela – o fino plano espelhante e os discretos volumes de gesso – faz parte do mesmo espaço de significação. Toda obra de arte é filtro, mas sua fina espessura não apaga a força interna que faz oscilar o gesto artístico, ex-pressivo por natureza, entre polos matéricos e outros, sintéticos. Assim, os espelhos cegam a “reprodução” do vivo, mas os volumes devolvem alguma naturalidade embrionária sem perder a faculdade sintética: ideal e sensorial coadunam, medição e ponderação, geo-metria e peso se respondendo numa total complementaridade.
Performance do Arquivo: Especulações
De Maria Ivone dos Santos. Abertura neste sábado (9/3), às 17h, no V744Atelier (Rua Visconde do Rio Branco, 744), em Porto Alegre. Visitação de quartas a sextas-feiras, das 14h às 17h. Outros dias e horários, agendamento pelo Instagram @V744atelier.