Por Francisco Dalcol
Doutor em Teoria, Crítica e História da Arte, diretor do Margs
A origem de um artista é um aspecto que costuma incidir na compreensão de sua obra e também no modo como manifesta o seu senso de pertencimento. Pois não é incomum que as experiências pregressas, sobretudo aquelas da fase iniciática da vida, de algum modo se reflitam posteriormente na produção ou mesmo na maneira como o artista se coloca no mundo.
Talvez um desses maiores exemplos seja Iberê Camargo (1914-1994). Não raro saudado como o mais importante artista gaúcho e o maior pintor brasileiro, sua projeção se deu fazendo carreira fora do Rio Grande do Sul, a partir do Rio de Janeiro, mas isso nunca fez com que se desvinculasse de suas origens, seja manifestando-as em sua obra e em declarações, seja mantendo interlocução com o meio artístico local, tendo voltado a viver no Estado na década final de sua vida.
Outro gaúcho que fez sua carreira fora sem nunca deixar de afirmar sua origem é certamente Carlos Vergara (1941), um dos maiores artistas brasileiros de sua geração. Mas diferentemente de Iberê – que passou da infância ao início da vida adulta entre Restinga Seca, Jaguari, Santa Maria e Porto Alegre –, Vergara “apenas” nasceu no Rio Grande do Sul – na mesma Santa Maria onde Iberê estudou. Apenas porque muito cedo Vergara acompanhou com a família as mudanças de seu pai, reverendo da Igreja Episcopal Anglicana do Brasil, até se estabeleceram em 1954 no Rio de Janeiro, a partir de onde vem desenvolvendo desde os anos 1960 toda a sua produção e trajetória.
No entanto, igualmente a Iberê, de quem seria aluno e assistente, Vergara sempre se afirmou e segue se afirmando como gaúcho, mesmo não tendo efetivamente vivido no estado, assim expressando sua vontade de como ser reconhecido.
Essa compreensão dos caminhos que ligam ambos os artistas se renova em 2024, com a exposição Carlos Vergara – Poética da Exuberância, que o Museu de Arte do Rio Grande do Sul (Margs) e a Secretaria de Estado da Cultura (Sedac) têm a honra e a satisfação de apresentar conjuntamente com a Fundação Iberê Camargo.
A parceria, que se dá por ocasião dos 70 anos do Margs, parte de um modelo de colaboração até então inédito entre as instituições, resultando em um projeto de formato inovador. A exposição foi pensada como uma ampla e histórica individual sobre a produção e trajetória de Vergara, porém dividida em duas partes apresentadas simultaneamente, uma na Fundação e outra no Museu. Para a sua organização, foi convidado o curador Luiz Camillo Osorio, que há muito acompanha a produção do artista.
A parceria reforça ainda vínculos, uma vez que a parte da exposição de Vergara no Margs tem lugar em duas galerias, não por acaso uma que leva o nome de Iberê.
As vinculações também evocam a memória e a institucionalidade. Em 1984, Iberê destinou seu arquivo pessoal ao Acervo Documental do Margs. Com a abertura da Fundação Iberê, parte dessa documentação foi transferida para a sua guarda em 2004, celebrada à época com a exposição Iberê Camargo – Uma Perspectiva Documental no museu. Hoje, o Margs mantém sob guarda um amplo dossiê documental sobre Iberê, que recentemente foi digitalizado e se encontra disponibilizado em meio online, assim como um substancioso dossiê sobre Vergara.
Outros vínculos se dão com relação à história das exposições do museu. Em 2009, Vergara apresentou a exposição Sagrado Coração, Missão de São Miguel, que até aqui figurava como sua primeira e única individual no Margs. Na ocasião, exibiu a produção que realizou em viagem às ruínas da redução de São Miguel das Missões, em seu interesse artístico por investigar a experiência jesuítica no Rio Grande do Sul. Agora, Carlos Vergara – Poética da Exaltação conta no Margs com um segmento dedicado a obras desse projeto.
Por todos esses sentidos, a exposição integra no museu o programa expositivo História do Margs como História das Exposições, que trabalha a memória da instituição abordando a história do museu, as obras e constituição do acervo e a trajetória e produção de artistas que nele expuseram, a partir de projetos curatoriais que revisitam, resgatam e reexaminam episódios, eventos e exposições emblemáticas do passado do Margs, de modo a compreender sua inserção e recepção públicas.
Após a exposição conjunta de Vergara, a parceria entre Fundação Iberê e Margs irá trazer outra colaboração por ocasião dos 70 anos: em julho, mês do aniversário, teremos na Fundação uma mostra que reunirá os acervos de ambas as instituições para abordar a relação entre Iberê e o Margs, uma história que remonta à criação do museu, prossegue durante a vida do artista e se renova com a colaboração entre as instituições.
Carlos Vergara – Poética da Exuberância
Na Fundação Iberê Camargo e, simultaneamente, no Museu de Arte do RS (Margs). São dois recortes complementares que põem a trajetória do artista em retrospectiva. A curadoria é de Luiz Camillo Osorio. Visitação até 5 de maio. Veja os horários e outras informações em iberecamargo.org.br e margs.rs.gov.br.