Por Bernardete Conte
Psicanalista, escultora, mestre em pintura pela Universidade de Lisboa
O Holocausto foi o mais cruel genocídio vivido pela humanidade. Todos os genocídios o são. Mas o nazismo estruturou uma indústria da morte, com uma linha de (des)montagem de produção. Uma fábrica da morte.
Didi-Hubermann, judeu, grande filósofo francês de arte, diz que o Holocausto é, foi e sempre será o “inimaginável”. Há histórias contadas por meio de algumas singularidades concretas: o testemunho de sobreviventes, como Primo Levi; as quatro fotos tiradas em Birkenau, arriscadamente captadas por um membro, anônimo, do SonderKommando; o registro nos Rolos de Auschwitz, enterrados por esses mesmos membros pouco antes da liquidação do campo; o recente documentário com as falas do algoz Adolf Eichmann. Todos esses registros são “instantes de verdade”, mas não são suficientes para que se possa imaginar os sentimentos do que foi vivido, porque são da ordem da imagem. Pois a imagem possui um duplo regime: tem uma natureza subjetiva e voltada à inexatidão, ou seja, tem uma relação fragmentária e lacunar com a verdade de que é testemunha.
Isso gera uma dificuldade porque frequentemente pede-se “muito” ou pede-se “pouco” à imagem. Quando se quer “toda a verdade”, elas serão insuficientes: são fragmentos, não dizem tudo. Parecem “inexatas”. Quando se quer “pouco”, passarão a ser vistas como um “simulacro” – falsas, portanto. Se não podem ser mostradas, é como se fosse uma prova de que não existiram de fato.
Mas decidi fazer um registro estético dessas imagens, para saber, para guardar na memória, para lembrar. E, para isso, fiz uso do mito da Medusa Górgona, cujo rosto era tão horrível que um mero olhar lançado sobre ela transformava os homens em pedra.
Perseu foi incitado a matar esse monstro. Athena aconselhou-o a nunca olhar seu rosto diretamente, mas a fazê-lo por intermédio do reflexo no escudo polido. E foi com essa estratégia que Perseu conseguiu cortar-lhe a cabeça. Esse mito encerra a ideia de que, quando não podemos ver os horrores reais, fonte de impotência, uma vez que eles nos paralisam com um terror ofuscante, temos de criar uma estratégia. Fazer o mesmo que Perseu. Criar uma imagem para vê-la de outro ângulo. Através de um escudo polido. O que usei para enfrentar esse rosto perverso da fábrica da morte veio por um processo poético de reconstrução das imagens do real, para que o espectador corte a cabeça do horror inimaginável e assim acolha e incorpore, no seu saber, o rosto daquilo que não é suportável quando visto pela ótica da realidade. Isto é, para poder simbolizar.
O processo poético cria imagens, e estas têm uma dimensão ética, que não faz desaparecerem as imagens reais, mas permite torná-las fonte de conhecimento e incorporá-las à memória. Algo que exige coragem – de quem faz e do espectador. A coragem de conhecer é a coragem de incorporar na nossa memória um saber que, uma vez reconhecido, suprime o tabu alimentado pelo horror paralisante. Coragem de ver, para dissolver, para poder imaginar e para lembrar. E é nisso que reside a capacidade própria da imagem de simbolizar o real. Só sobrevive em sentido pleno quando a coragem de conhecer se torna fonte de ação e resgata um lugar de saber e consequente memória.
Perseu enfrenta a Medusa, apesar de tudo. A impotente fatalidade “não dá para olhar para a Medusa” foi substituída por uma resposta ética: “Eu a enfrentarei olhando-a de outro modo”. Essa possibilidade chama-se imagem. Foi a minha resposta ética frente ao desafio do impossível olhar.
Uma das séries que apresento é composta de 24 fotografias de homens, mulheres e crianças, com seus nomes, cidades, países, anos de nascimento. Fazem parte do acervo do Museu do Holocausto de Washington (EUA). Todas as fotos estão identificadas. Tornei-as evanescentes como metáfora tanto da neblina do tempo como pelo seu desaparecimento, pois não lhes deram sepultura, nem a Shivah, o ritual judaico da morte.
Outra série é composta de gravuras digitais a partir das fotografias de pessoas à espera dos trens que as levariam a seu fatal destino. Essas fotos foram reconstruídas poeticamente, utilizando papéis de seda de antigos álbuns de fotografias, refotografadas, impressas e compostas com a intenção de dar a possibilidade de ver as mesmas imagens por meio do “escudo polido”. Para, através da imagem refletida, conseguir olhar, para saber e para cortar o horror medusante. E, assim, poder lembrar.
Ainda há a série Ferrugens. Com imagens inseridas no meio de telas enferrujadas, metáfora da passagem de um tempo que ardeu.
Hanna Arendt, em A Condição Humana, chama o artista, o poeta e o historiador de “construtores de monumentos”, sem os quais a história não sobreviveria. E solicita a participação desses para a continuidade da vida. Eu, como artista, participo dessa herança, através de imagens reconstruídas ao Holocausto, para criar memórias que preservem o futuro.
Para Lembrar
De Bernardete Conte. Abertura na quinta-feira (1º/9), com visitação até 1º/10, de segunda a sexta, das 9h30min às 18h30min, e sábado, das 9h30min às 13h30min. Na Gravura Galeria de Arte (Rua Corte Real, 647), em Porto Alegre.