Por Maria Gabriela Puente de Souza
Professora, escritora, advogada e mestre em Direito pela UFRGS
Hannah Arendt foi uma filósofa de origem judaico-alemã, que viveu nos EUA após fugir de um campo de concentração para onde havia sido enviada pelo regime nazista, nos anos 1940. Na América, publicou algumas das principais obras da filosofia política ocidental, como Origens do Totalitarismo (1951), A Condição Humana (1958), Entre o Passado e o Futuro (1961), Eichmann em Jerusalém (1963) e Sobre a Revolução (1963).
Os sempre atuais e espinhosos assuntos abordados pela autora transitam por política, autoridade, revolução, fundação, desobediência civil e democracia, como arquétipos dos dilemas próprios do sistema republicano. Arendt sempre expressou sua preocupação com sistemas nos quais a democracia representativa simboliza a única forma de cidadania, retirando do indivíduo a possibilidade de atuação direta, sem intermediação, sobre as decisões de interesse público.
Ademais, a filósofa parecia não se contentar com sistemas mistos de democracia representativa e direta, quando essa última não é efetivamente garantida mediante um espaço dialógico no qual a maioria e, sobretudo, as minorias sociopolíticas teriam seus direitos políticos assegurados, naquilo que se convencionou chamar de democracia substancial.
Tal concepção vem da percepção de Arendt de que o ser humano só pode ser considerado um animal político quando atua ao lado de seus pares, de modo que a política arendtiana se estabelece pressupondo diversidade de ideias e pontos de vista. O político arendtiano não se conforma em espaços públicos nos quais só um, alguns ou a maioria concentram o poder, mas quando todos são titulares da ação política.
Importante é destacar que Arendt sempre defendeu a ideia de que na modernidade emergiu o modelo ocidental de atomização política e apolitização do ser humano, em um processo de individualismo e alienação quanto à coisa pública a partir de fenômenos como o romantismo político na Europa dos séculos 18 e 19, o próprio liberalismo político e o elevado papel do trabalho e do consumo (animal laborans) na concepção arendtiana de vita activa. E, por meio dessa apolitização, atomização e alienação política, ainda segundo a autora, sempre acabou sendo criado um espaço público propício, durante a história ocidental, a regimes ditatoriais e, em seu extremo, totalitários.
Portanto, em Arendt, pode-se constatar um esforço teórico para demonstrar que a felicidade pública somente pode ser alcançada quando é viabilizada institucionalmente, a cada membro da comunidade, a participação nas decisões políticas e de interesse coletivo. A ausência de tal espaço ocasiona, no âmbito particular, a individualização, a ausência de juízo político e a atomização social e, no aspecto institucional ou público, a ideologia, a violência e a dominação.
No entanto, Arendt entende que a democracia representativa, nos moldes em que é desenvolvida nas sociedades liberais modernas, é um modelo que não proporciona essa atuação a todos, encerrando a ideia de tirania da maioria. Só proporcionará uma democracia substancial, ou seja, que garanta liberdade de atuação política a todos, um modelo que, embora representativo, preveja paralelamente mecanismos de atuação direta, para além da iniciativa popular de projetos de lei, do plebiscito e do referendo.
A autora busca um retorno ao sistema de conselhos, exercido em espaços políticos pequenos e surgido em contextos pós-revolucionários, nos quais os cidadãos deliberam, de forma direta, sobre aplicação de recursos públicos, políticas públicas e demandas de interesse da coletividade.
Outro importante assunto abordado por Arendt e que infelizmente não é objeto de uma análise mais acurada, em comparação com as demais temáticas que compõem sua teoria política, ao menos no Brasil, diz respeito ao acesso à escola pela comunidade afro-americana, cuja estrutura socioeconômica e política se aproxima do racismo institucional persistente no Brasil.
Em artigo publicado em 1959 (Reflexões sobre Little Rock), Arendt posicionou-se em sentido contrário ao entendimento exarado pela Suprema Corte norte-americana, a qual julgou procedente ação coletiva promovida por uma associação de direitos civis a respeito da divisão racial no ensino (separate but equal), sendo reconhecida a inconstitucionalidade da legislação de segregação de alunos negros e brancos. Em decorrência de tal decisão, os negros em idade escolar adquiriam o direito de frequentar toda e qualquer escola.
A educação de qualidade é um dever estatal para com todos de forma isonômica e de uma demanda de política pública governamental, embora alguns reconheçam estranha à competência do Poder Judiciário.
Para Arendt, o reconhecimento da inconstitucionalidade das leis sulistas segregacionistas pela Suprema Corte adentrou a esfera privada das decisões familiares sobre a educação de seus filhos, ou seja, invadiu o direito de os pais decidirem com quem seus filhos devem conviver na escola. Ainda que a questão devesse ser tratada pelo Executivo e Legislativo, e não pelo Judiciário.
Esse posicionamento rendeu controvérsias no meio acadêmico e literário. Para a autora, em seu artigo de 1959, a posição norte-americana com relação à questão racial estava arraigada na tradição e se tratava de um crime perpetuado institucionalmente desde a fundação constitucional, quando da opção dos Pais Fundadores pela não abolição da escravidão. Assim, a solução para a questão encontrava-se no âmbito da estrutura política norte-americana.
Em análise a esses argumentos, além de se constatar o apego da autora aos seus rígidos conceitos de esfera pública e privada, por vezes sem correspondência com as demandas das sociedades complexas, vê-se o equívoco em compreender a educação de qualidade como assunto de âmbito privado. Trata-se, ao contrário, de um dever estatal para com todos de forma isonômica e de uma demanda de política pública governamental, embora alguns reconheçam estranha à competência do Poder Judiciário.
Quanto ao argumento de que a declaração de inconstitucionalidade de leis e a ordem mandamental dirigida às escolas teriam demonstrado extrapolação do Poder Judiciário em sua competência institucional, verifica-se uma objeção que não foi resolvida pela autora. Sem retomar sua interpretação do Caso Little Rock, Arendt mudou depois seu posicionamento sobre o papel do Judiciário no controle da constitucionalidade, reputando-o indispensável tanto à distribuição do poder entre as instituições estatais quanto ao acesso de minorias para o exercício de seus direitos fundamentais, conferindo ao Judiciário uma atuação independente no controle da constitucionalidade, de forma a conservar o consensus iuris original e a autoridade da Constituição.
De toda sorte, considerando a importância que a autora confere à distribuição do poder na esfera estatal como única forma possível de combate à tirania e, ainda, ao protagonismo político a ser assegurado a cada membro da comunidade, a conclusão é de que sua opção pela legitimidade do Judiciário no controle de constitucionalidade é democrática, desde que exercida no estrito sentido de manutenção do pacto social original e como garantia do espaço público e da liberdade a grupos minoritários.
O livro
A Filosofia Política de Hannah Arendt: Dilemas da República
Ed. Letramento, 152 páginas, R$ 39,90. Lançamento no dia 26, às 18h, na Livraria Cirkula (Avenida Osvaldo Aranha, 522), em Porto Alegre.