Por Cauê Alves
Curador-chefe do MAM-SP, curador da exposição Antes que se Apague: Territórios Flutuantes, de Xadalu Tupã Jekupé
O vídeo Antes que se Apague: Territórios Flutuantes, que dá nome à exposição individual de Xadalu Tupã Jekupé a ser inaugurada neste sábado (14/5) na Fundação Iberê Camargo, trata de lembranças, de sonhos e do apagamento da cultura indígena. Filmada na antiga Terra Indígena Ararenguá, na beira do Rio Ibirapuitã, em Alegrete, cidade em que o artista nasceu, a obra foi construída com depoimentos da avó do artista, que recorda a sua própria avó, a trisavó de Xadalu. A partir de uma fotografia com pouca nitidez da bisavó sentada próximo ao rio, a memória e o desaparecimento de tradições ancestrais, principalmente nos centros urbanos, são abordados ao som das águas correndo.
A narrativa de Dalva Oliveira da Luz nos permite imaginar, pela história oral, o modo de vida que tem sido exterminado há séculos. A aparência dos corpos, a sua beleza, a relação afetuosa entre neto e avó, são tematizados ao redor da força da correnteza que tudo leva. Lembrança e esquecimento se entrelaçam.
Diversas etnias habitavam historicamente as margens do Rio Ibirapuitã, entre elas os Charruas, os Guaranis Mbyá, os Jaros, Mbones e Minuanos. Foi lá que as Missões Jesuítas, realizadas pela Companhia de Jesus, uma ordem ligada à Igreja Católica que pregava o evangelho e divulgava o cristianismo, se instalou no século 17. O processo de aculturação e de integração dos povos indígenas ao modo de vida europeu foi alavancado no Brasil durante o período colonial, com a catequização dos povos nativos pelos jesuítas. Essa ordem religiosa tinha como objetivo central evangelizar os indígenas e foi contra a tentativa de portugueses e espanhóis de escravizá-los.
Na fundação do município de Alegrete, os antepassados do artista foram expulsos das terras que habitavam há séculos e registrados como cidadãos. Não por acaso, o artista retorna ao Ibirapuitã, lugar onde ocorreram muitas das batalhas que dizimaram os indígenas e sua terra natal. O trabalho de Xadalu se desenvolve a partir de alguns relatos de sábios, de sua avó e da pesquisa que fez nos Diários das Campanhas do Sul, do século 19, em que descobriu que lá ocorreu a encenação do ritual da paixão de Cristo: um guarani foi estimulado a se sacrificar como Jesus e seu corpo foi enterrado próximo ao Ibirapuitã.
A obra de Xadalu nos abre uma perspectiva da história a partir da visão dos que perderam as batalhas. Não apenas a Guerra Guaranítica, mas também as pequenas batalhas cotidianas, aquelas que silenciosamente vão sendo travadas e talvez nem sejam percebidas como uma batalha por quem venceu. O simples fato de existir uma cidade na beira do Guaíba, algo tão naturalizado, já é um índice da vitória dos colonizadores sobre os povos indígenas. Segundo o cacique geral Mburuvixa? Tenonde? Cirilo Karai, do povo Guarani Mbyá, Porto Alegre já foi uma aldeia indígena. E no território onde foi instalada a cidade existiam muitas árvores frutíferas chamadas aguay, ou aguaã, que tem relação com a água e com o nome Guaíba.
Em 2018, a convite de Marina Ludemann, do Instituto Goethe de Porto Alegre, participei do projeto O Poder da Multiplicação, que envolveu vários artistas e críticos que discutiram a gravura, a impressão e a reprodutibilidade na arte. Houve uma exposição no Margs que, no ano seguinte, foi para Leipzig, na Alemanha, e o lançamento de um livro bilíngue.
Foi nessa ocasião que conheci Xadalu, que também participou da mostra e da publicação. No ano passado, recebi o convite dele e da Fundação Iberê para acompanhar e fazer a curadoria da exposição. Visitei seu ateliê, discutimos seu trabalho, fomos a uma aldeia Guarani Mbya, sentei-me ao redor da fogueira e escutei várias histórias. O artista possui um contato frequente com os sábios e realizou pinturas, vídeos e instalações a partir dos mitos originários.
Essas narrativas fantásticas revelam a complexidade do imaginário guarani e toda a riqueza dessa civilização, que há séculos é ameaçada e dizimada. O trabalho de Xadalu Tupã Jekupé contribui para que outro modo de vida ganhe visibilidade e possa se tornar possível. Numa época em que as mudanças climáticas afetam a todos, a promessa de uma nova relação com a terra, antes que ela se apague completamente, só se cumprirá quando os saberes dos povos originários forem respeitados.
Em cartaz
Antes que se Apague: Territórios Flutuantes, de Xadalu Tupã Jekupé. Com curadoria de Cauê Alves. São 19 obras do artista, apresentadas a partir deste sábado (14/5) na Fundação Iberê Camargo (Av. Padre Cacique, 2.000), em Porto Alegre. Também neste sábado, às 16h30min, haverá a apresentação do episódio de Xadalu para a websérie Misturados, seguido de um bate-papo com os diretores Luiz Alberto Cassol e Richard Serraria, Xadalu Tupã Jekupé e Cauê Alves.