Por Izis Abreu
Mestra em História, Teoria e Crítica de Arte, curadora do Museu de Arte do RS (Margs)
Pinceladas bem marcadas retratam três corpos femininos repousando sobre a areia clara do que aparenta ser uma praia. Pesa sobre eles a frieza opressiva de um céu azul/lilás que também cumpre a função de dar perspectiva à paisagem. Ganha destaque no enquadramento a cor preta dos corpos e o fato de serem exibidos sem cabeça. A pintura é da multiartista Maria Lídia Magliani (1946-2012) uma das mais consagradas artistas visuais do Rio Grande do Sul. Em 1966, num cenário em que quase não havia estudantes negros no Instituto de Belas Artes da UFRGS, Magliani se graduou em pintura. Construiu uma carreira de destaque no circuito gaúcho trabalhando com diferentes técnicas e linguagens artísticas. Em 1980, foi morar em São Paulo com o objetivo de se inserir no mercado de arte paulista. Transferiu seu ateliê para o Rio de Janeiro, em 1997, vindo a falecer 15 anos depois.
A arte, para Magliani, era um projeto de vida. Na obstinada busca pela realização de seus propósitos, trilhou uma trajetória tão intensa e dramática quanto sua expressividade artística. Teve um bom trânsito nas instâncias de circulação e difusão que configuram os sistemas da arte no Brasil, a exemplo do Margs, do MAM-SP, do Museu Afro Brasil e da Bienal São Paulo. Contudo, nem mesmo a potência gestual impressa na fluidez do seu desenho, no embate com a madeira ou na dança frenética de seus pincéis seduziu por completo as estruturas dominantes do mercado da arte brasileiro.
A artista se autodefinia como uma propositora de questionamentos. Em vez de respostas, sua arte lançava perguntas. Seu trabalho expressava sua própria condição humana, mostrando a si como um todo. Isso implica em tornar visível a subjetividade de uma mulher negra que opta por seguir a carreira artística em um pais em que, historicamente, mulheres negras estão destinadas a exercer os papéis sociais da trabalhadora doméstica ou da “mulata tipo exportação”; implica tornar visível o universo pessoal de quem viveu e produziu em um contexto de cerceamento dos direitos civis, mas que também vivenciou a progressiva abertura política no país.
Mas falar sobre ela é também expor um cenário de ausências e exclusões. Pesquisas recentes evidenciam que a artista figura como única ou uma das poucas mulheres negras presentes em acervos artísticos das principais instituições de preservação e difusão da arte no Estado. Isso demonstra que a raça é uma determinante hierárquica na configuração das relações de poder desses espaços, nos ajudando a refletir sobre o quanto a intersecção entre gênero e raça define as condições de acesso, as posições de destaque e a legitimação artística. Embora mulheres, de um modo geral, historicamente sejam menos reconhecidas do que os homens nos circuitos de legitimação da arte, negras tendem a ser mais invisibilizadas. Motivo pelo qual a presença de Magliani – onde impera o privilégio da brancura – ganhou, durante largo tempo, caráter de excepcionalidade. Numa entrevista para o Boletim do Margs de 1987, ao ser questionada como era ser negra e artista, ela declarou o seguinte: “Ser uma pessoa de cor negra não interfere em nada na minha pintura, eu não entendo a sempre presente preocupação de pessoas com esse aspecto. É minha vez de perguntar por que parece tão excepcional que um negro pinte? Por que a condição social de artistas de cor branca nunca é mencionada?”.
Uma mulher negra produzindo arte não deve ter caráter de excepcionalidade porque há dezenas de nós produzindo Brasil afora. Entretanto, quanto mais retinto for o tom de sua pele, maior dificuldade ela encontrará para se inserir e se manter no circuito das artes. É nesse ponto que devemos ser vigilantes.
A singularidade de Magliani reside em sua potente e vigorosa produção. A deformação da imagem visual, a temática da solidão e da miséria humana, elementos característicos da linguagem expressionista, são alegorias das violências físicas e simbólicas, bem como da alienação a que nossas mentes e corpos são constantemente submetidos. Aspectos que atravessavam sua própria realidade de mulher preta e da classe trabalhadora. No período de sua formação já era possível identificar traços da poética que a consolidou como artista: dar voz aos corpos oprimidos e subjugados. Corpos que, na maioria das vezes, são femininos (como na pintura Ela, de 1977, por exemplo), mas que eventualmente são negros (como na pintura das três mulheres representadas sem cabeça).
A exposição
Com curadoria de Denise Mattar e Gustavo Possamai, Magliani está em cartaz até 31 de julho na Fundação Iberê Camargo (Av. Padre Cacique, 2.000), em Porto Alegre. São 200 obras produzidas por Maria Lídia Magliani (1946-2021) ao longo de 50 anos. Os ingressos custam de R$ 10 a R$ 30, de sexta a domingo, das 14h às 18h. Às quintas-feiras a entrada é gratuita.