A carteirinha da Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) diz: "Brasileiro. Nascido em 20/12/2005. Considerado como adequadamente qualificado para o exercício das prerrogativas de: piloto de voo". Tudo estaria dentro do esperado, não fosse por um detalhe: o documento traz a foto de um pássaro. Seu nome é Sporophila beltoni e possui também RG, passaporte, certidões de nascimento e de óbito.
Para fabricar toda essa papelada para uma ave morta, o artista Walmor Corrêa levou cerca de dois anos. Detalhista ao extremo, usou alguns de seus próprios documentos (vencidos) e consultou especialistas, como o dono de um cartório, para conferir ao passarinho o status de cidadão brasileiro. Esse empreendimento pode ser conferido na nova exposição do Instituto Ling, Walmor Corrêa e Sporophila Beltoni. Na galeria, que agora parece um modesto museu de ciências, o visitante descobre que, além de piloto, o pássaro é também solteiro e cantor (Corrêa manipulou seu canto para soar como a melodia do hino nacional). São 17 itens, entre documentos, fotografias, mapas, vídeo, pinturas e desenhos selecionados pelo artista e pelo curador do Instituto Tomie Ohtake, Paulo Myada.
Catarinense radicado em São Paulo desde 2013, Corrêa viveu boa parte dos seus 55 anos em Porto Alegre. Só deixou a cidade gaúcha quando a distância do centro do país se transformou em um entrave para a carreira:
– Adoro Porto Alegre, mas comecei a perder exposições porque era muito caro pagar transporte e seguro para as obras. Os curadores estrangeiros desistiam de visitar meu ateliê quando descobriam que não era em São Paulo, nem no Rio – explica o artista.
O trabalho de Corrêa nasce do encontro entre arte e ciência. Fascinado por anatomia e história natural, é famoso por criar obras que combinam uma estética "científica" com propostas absurdas, como o desenho minucioso da anatomia de uma sereia ou pássaros empalhados com cabeças de roedores (vistos em sua última mostra em Porto Alegre, Você que Faz Versos, em 2010, no Instituto Goethe). Para assegurar a aura de autenticidade, Corrêa firma parcerias com especialistas. Recentemente, escalou um neurologista para ajudá-lo a mapear o cérebro do pintor Iberê Camargo.
_ A curiosidade sempre movimentou muito a minha vida. Queria saber como as coisas aconteciam, colecionava insetos quando criança. Sempre tive um pensamento muito racional e, a partir dele, vinha a poesia.
Uma ave brasileira perdida em Washington
Para esta exposição, o artista voltou-se a um de seus interesses, a ornitologia (estudo das aves). O próprio Corrêa explica em um vídeo (exposto no Ling e acessível pelo link bit.ly/walmorbeltoni) que o projeto ganhou forma durante uma residência artística financiada pelo Instituto Smithsonian, nos Estados Unidos. Vasculhando os arquivos do Museu de História Natural de Washington, descobriu uma ave empalhada em 1820 que correspondia a uma espécie recém-catalogada por pesquisadores brasileiros: Sporophila beltoni. Nem mesmo o museu sabia da existência do animal, que estava esquecido em uma caixa. A imagem do pássaro sozinho no fundo da gaveta lhe comoveu:
– Veio um misto de alegria, por ter ficado 50 dias dentro de um museu e descoberto algo, e tristeza, porque me coloquei no lugar dele – diz o artista, que traduziu esse sentimento em uma das peças da mostra: a réplica da gaveta do museu com a estrutura da casa em que morou quando era criança.
Comovido com o pássaro "indigente", Corrêa marcou uma entrevista com o embaixador brasileiro em Washington para denunciar aquele abandono e solicitar um passaporte para o animal. Diante da negativa, tomou para si mesmo a missão de fabricar os documentos. O ano era 2014, e Corrêa imediatamente associou o brasileiro anônimo à condição de imigrantes ilegais vivendo nos EUA.
– Quantos brasileiros moram ilegalmente lá? E quantos outros imigrantes não estão em uma vala comum porque morreram na fronteira? – questiona o artista.
– O pássaro é o objeto da pergunta, mas o trabalho é sobre a condição humana. Estou falando de solidão, de abandono – conclui.
Para mostrar sua empatia com a Sporophila beltoni, o artista exibe também um desenho do seu habitat natural e a pintura de uma paisagem com a perspectiva do próprio animal, que enxerga o mundo em tons de violeta.
– Tenho uma paixão forte por aves. Acho que é porque, simbolicamente, a liberdade é uma coisa que a gente corre muito atrás. Olhava para aqueles anéis (etiquetas de identificação colocadas nas patas de pássaros), reconhecendo a importância científica daquilo, mas comparando com o imigrante que precisa de documentação. Sempre achei isso um absurdo – reflete o artista.
Walmor Corrêa e Sporophila beltoni
- De Walmor Corrêa
- Curadoria: Paulo Myiada
- Galeria do Instituto Ling (Rua João Caetano, 440), bairro Três Figueiras, em Porto Alegre.
- Abertura nesta terça-feira (7 de agosto), às 19h. Na ocasião, o artista e o curador farão uma conversa aberta ao público sobre a exposição.
- Visitação de segunda a sexta-feira, das 10h30min às 22h, e no sábado, das 10h30min às 20h. Até 1º de novembro. Entrada Franca.