Dois dias antes de comemorar os 10 anos de inauguração da sua sede, em 30 de maio, a Fundação Iberê Camargo (FIC) anunciou o nome do seu novo superintendente, Emilio Kalil. O experiente gestor cultural assume o cargo que já foi de Fábio Coutinho e Denise Klein, porém prefere se considerar um diretor-geral da instituição. Desde 1º de maio, ele tem estudado maneiras de dar continuidade ao processo de reposicionamento de governança da FIC, iniciado em 2016.
Nascido em Bagé, Kalil é formado em jornalismo, mas há 40 anos dedica-se à produção e à gestão cultural. Foi presidente do Theatro Municipal do Rio de Janeiro, diretor do Teatro Municipal de São Paulo e diretor do Grupo Corpo, em Belo Horizonte. Produziu espetáculos internacionais para as companhias de Pina Bausch, Merce Cunningham e Trisha Brown. Foi produtor de exposições importantes como a mostra Brasil 500 Anos e atuou como diretor de Produção e Projetos da 29ª Bienal de São Paulo. Até o final do ano passado, Kalil era Secretário de Cultura da cidade do Rio de Janeiro e presidente da Fundação Cidade das Artes (RJ), onde foi celebrado por levantar o estigma de "elefante-branco" do empreendimento. Agora, passará a dividir o seu tempo entre a capital gaúcha e São Paulo, onde deixará de manter um escritório, mas continuará envolvido com outros eventos, como a Semana de Arte, em agosto.
Em entrevista, ele comenta sua missão à frente da Fundação Iberê Camargo:
O senhor chega à FIC num momento de celebração dos 10 anos da sede, mas também de crise para a instituição, apesar de o pior aparentemente já ter passado. Como avalia as recentes dificuldades da FIC?
Houve um desarranjo de gestão. Acho que faltou gás e o novo botijão custou a chegar. A volta do Justo (Werlang, diretor-presidente da FIC) para assumir o corpo de diretores mexeu bastante. Na última reunião com o Gerdau (Jorge Gerdau Johannpeter, presidente do Conselho Superior da FIC), senti ele muito otimista porque havia um novo pensar sobre a Fundação.
E o senhor está otimista, apesar da crise política e econômica do país?
Não falta otimismo, mas não dá para sentar e dizer que vai dar tudo certo. Neste momento está muito menos fácil do que alguns anos atrás, mas vamos sair disso com toda a certeza, principalmente se houver esse comprometimento de Porto Alegre com a Fundação. Nada pior do que o período que eu vivi profundamente, que foi a ditadura. E a gente sobreviveu. É complicado avaliar Porto Alegre porque estamos num momento de muitas incertezas. A chegada de outubro com as eleições vai ser determinante porque vamos saber com que país vamos lidar. O empresário que pode patrocinar a FIC quer certeza de retorno: de imagem, respeitabilidade, confiança.
Quais as mudanças que estão por vir a partir da sua chegada?
Não pretendo fazer mudanças imediatas. As mudanças são naturais quando não se encaixam no projeto que está se implementando. O meu projeto para a Iberê começou em 1º de maio, quando assumi, mas só vai ser visto pelo público a partir do ano que vem. O que já está programado para este ano pelo curador atual, que é o Bernardo (de Souza), vamos honrar. Neste ano, me dedico a colocar as contas em dia, conversar com o Conselho e o corpo de diretores para ver o que podemos encontrar de solução para a FIC andar com as próprias pernas. Claro que sempre apoiada em patrocínios.
Quais foram as suas primeiras impressões da FIC?
O que senti na minha chegada é que a FIC se distanciou muito da comunidade de Porto Alegre. Minha prioridade vai ser reaproximar a FIC da comunidade, das periferias. Trazer nova vida.
Esse trabalho já tem sido feito pela instituição. O senhor acha que deve ser reforçado?
A mudança tem que ser muito maior, não é só mudando o perfil da FIC que você conquista o público. A Fundação deve ir ao seu público para seduzi-lo, encantá-lo, para que depois ele vá até ela. Neste momento, temos dois projetos que podem ser o início de um novo caminho. Encaminhamos ambos para as secretarias de cultura do Município e do Estado. Queremos atender escolas públicas nas próprias instituições e fazer ações em lugares comerciais de Porto Alegre para tentar trazer as crianças, as famílias inteiras para o Iberê. Foi o que fiz quando fui secretário de cultura no Rio. Minha função principal até 2016 era tirar a imagem da secretaria como um lugar onde só se chega para pedir dinheiro. Fomos a todas as comunidades mais problemáticas do Rio. O que me interessa é fazer a FIC sair mais do prédio.
Como ficam os projetos suspensos, como a catalogação da obra de Iberê Camargo?
Tudo continua. Mas é muito cedo para dar declarações definitivas. Tudo é um estudo, um projeto que está começando a andar. O que mais me entusiasma hoje é uma conversa adiantada que estamos tendo com a PUCRS que envolve essa catalogação. Vamos trazer uma tecnologia nova para que se possa ter o acervo catalogado e disponível. Quase ninguém sabe que a FIC é a única instituição cultural do Brasil que tem todo o acervo fotografado, disponível no Google Arts&Culture. E os últimos retoques estão sendo dados no novo site da FIC para que vá para o ar o mais rápido possível. Quanto mais a FIC estiver nas mídias sociais, melhor.
Já no segundo semestre vamos aumentar em um ou dois dias (o funcionamento da FIC). E gradualmente voltará à normalidade, para chegar em janeiro de 2019 funcionando de terça a domingo.
Há previsão para que a FIC volte a funcionar na semana?
Já no segundo semestre vamos aumentar em um ou dois dias. E gradualmente voltará à normalidade, para chegar em janeiro de 2019 funcionando de terça a domingo. Não que hoje não esteja normal, mas a situação é de cintos apertados.
Para isso, a FIC vai precisar aumentar a captação de recursos. Como está esse processo?
Sempre fui otimista. Temos na FIC, funcionando a pleno vapor, um grupo de diretores muito disponível e necessário. Junto com o conselho, eles estão começando os trabalhos para que esse fundo possa existir o mais rápido possível, buscando novos patrocinadores.
Sua trajetória na cultura começou ligada às artes cênicas, com o Grupo Corpo. Depois se expandiu para as artes visuais. O senhor vai dar continuidade ao projeto de tornar a Iberê mais multidisciplinar?
Sempre fui movido a isso. Fiz uma ópera e convidei a Bia Lessa e o Paulo Rocha, que nunca tinham feito uma ópera. Virou um acontecimento cultural. Cada vez que a gente fizer alguma coisa na FIC tem que ser um acontecimento. Algo que dê razão de a gente estar ali, gastando dinheiro de patrocinador. A FIC é uma máquina cara, sem dúvida nenhuma. Temos que sensibilizar o empresariado gaúcho para que veja nela uma coisa importante para Porto Alegre, Rio Grande do Sul e Brasil. Nessa ordem.
Qual foi a missão que o senhor recebeu ao ser convidado a assumir a superintendência?
Só é preciso recolocar a instituição, muito querida por todos desde o início. Eu me lembro bem da festa de abertura, há 10 anos, havia ali dois interesses muito grandes: o Iberê e a arquitetura do prédio, que deu visibilidade ao projeto da FIC. Por isso, é necessário que tenhamos um escaninho de arquitetura, porque o prédio é um ícone. A Iberê não pode ficar só nas artes visuais. Inclusive uma das exposições que o Bernardo (de Souza) programou festeja o (Álvaro) Siza agora em junho. É uma das ações de aniversário desses 10 anos. Precisamos deixar isso permanentemente visível porque não é um prédio qualquer, não é um acervo qualquer. Esse é um dos meus primeiros desafios: não deixar a Fundação ser vista como uma espécie de biblioteca só de Iberê. Temos que ter programação permanente de fotografia e arquitetura, além de palestras, filmes... Coisas que já começaram e só poderão melhorar.
Com relação às exposições, o que o senhor pode antecipar?
Já estamos costurando uma exposição de grande impacto, que espero anunciar em breve. É para o ano que vem, mas para o meio do ano, porque milagre tem limite. É importante ter uma vez por ano alguma coisa que sacuda o público para que ele continue indo à FIC durante todo o ano.
O senhor tem fama de exigente e detalhista ao extremo. É isso mesmo?
Gosto das coisas como elas devem ser. Se querem me chamar de detalhista, que chamem. Sou bastante centralizador no início porque preciso saber com quem estou trabalhando. No início, as pessoas estranham o meu jeito, porque eu falo tudo, não fico na diplomacia. Com uma equipe tão pequena, não dá pra trabalhar como se fosse em família, não dá para fazer rodeios.
Qual o tamanho da atual equipe na FIC?
Excluindo os serviços terceirizados, de limpeza e segurança, no escritório somos menos de 15. É miserável para o tamanho da Fundação.
Um perfil seu publicado no jornal O Globo é finalizado com uma frase sua sobre a Cidade das Artes: "A ideia de fazer um prédio que estava morto viver. Isso que me dá encantamento". Seu negócio é salvar instituições?
Não é bem isso. Antes da Lei Rouanet, a gente brigava e não tinha os patrocínios que tínhamos hoje, vivíamos de colher dinheiro de bilheteria. A grande conquista do Grupo Corpo naquela época, que foi uma lição de vida para mim, foi saber que eu chegaria em Curitiba e lotaria um teatro de quase mil lugares por uma semana. Porque era um público que estava conquistado. Ele não ia lá testar para ver se o Grupo Corpo sabia ou não o que estava fazendo. Quando o prefeito do Rio me chamou para ser secretário de Cultura, tive várias missões: terminar a Cidade das Artes, uma obra que vinha se arrastando há mais de seis anos, o MAR e o Museu do Amanhã. Quando terminamos a Cidade das Artes, havia uma antipatia brutal da população com aquilo. Com razão, porque é o único centro cultural na face da Terra construído no cruzamento de duas avenidas que você não pode atravessar para chegar até ele. É uma coisa diabólica. Foi uma tarefa dura, mas graças a várias mudanças conseguimos integrar a Cidade das Artes para que pudesse ser acessada pela população, e depois acabar com o desencanto, porque aquilo ali era visto como um lugar que não ia funcionar, onde se roubou... Teve um trabalho hercúleo de uma equipe que durante um ano lutou contra tudo. Brigamos pela criação de uma passagem subterrânea, de um acesso para táxis, para que um trabalho de arte e educação fosse implementado. Nosso primeiro patrocinador foi um shopping vizinho que viu o movimento e perguntou como poderia ajudar.
Essas críticas de dificuldade de acesso também são frequentemente feitas à Fundação Iberê Camargo.
Eu mesmo também sofro essas dificuldades. Toda vez que eu vou a Porto Alegre, não sei se a Fundação está aberta, como chego lá, como saio de lá... É um monte de coisinhas que temos que resolver.
Algumas dessas coisas dependem de poder público.
A prefeitura tem mostrado muito carinho com a Fundação Iberê. Às vezes, parece que gostariam de ajudar, mas não foram requisitados antes.
Pode compartilhar as suas estratégias para driblar orçamentos apertados?
Primeiro, tem que ter uma antena ligada 24 horas por dia. Quando dirigi os teatros municipais no Rio e São Paulo, o relativo sucesso que a gente teve foi com uma programação que tem o caro, o médio caro, o barato e o muito barato, mas nunca tem uma queda de qualidade. Por exemplo, fazer uma ópera que custa R$ 2 ou 3 milhões é importantíssimo para um teatro, principalmente, um que tem vocação lírica. Ao mesmo tempo, se você arrecada um quarto desse valor com bilheteria, já se dá por feliz. Porque a bilheteria nunca cobre esses 2 ou 3 milhões. Com a mesma qualidade de uma Traviata ou um Don Carlo, pode-se ter um Nelson Freire fazendo recital, e a arrecadação vai ser quase idêntica só que o gasto vai ser bem menor. É preciso manter esse jogo. Por exemplo, amanhã você pode ter uma exposição de gravuras de Rembrandt que vai custar muito menos do que uma exposição de Jeff Koons. Uma caixa com uma obra de Koons pode ser a única caixa necessária para toda a exposição de gravuras. Quando trouxemos o Damien Hirst (obra Mother and Child Divided, instalação composta por vaca e bezerro cortados ao meio em tanques de formol) para a Bienal de São Paulo, tivemos que trazer quatro técnicos só para montar a vaca.