Por Paulo César B. do Amaral
Diretor do Margs e diretor artístico-cultural da Secretaria da Cultura do RS
Com adiamento estratégico de meio ano, a 11ª Bienal do Mercosul está sendo inaugurada neste fim de semana. Atraso justificado como tempo necessário à maturação e à reconstrução deste que continua a ser percebido como o grande evento das artes visuais em nosso Estado e que se fixou como um divisor de águas desde a sua primeira edição, em 1997.
Desta vez, o experiente Alfons Hug, com passagem pela Bienal de São Paulo, onde atuou como curador por duas oportunidades, abordará o tema Triângulo Atlântico, elevando de especial maneira a arte africana, pouco representada nas edições anteriores. Não seria demais perguntar o porquê de tal omissão até aqui, pelas Bienais do Brasil e das Américas, fato próximo ao incompreensível dado que somos um país em grande extensão construído pelo flagelo escravo que aportou no cais do Valongo entre os séculos 16 e 19.
Sob grilhões, só por ali passaram cerca de 1 milhão de negros, entre homens, mulheres e crianças. Em solo brasileiro, o negro refundou sua cultura e sua exótica arte, valores que de forma permanente florescem e se renovam em exuberante expressão. Não se trata de uma Bienal de arte africana, tampouco de uma Bienal de artistas negros ou de artistas afrodescendentes, mas de uma edição diversa do evento que ora passa a incluir no mapa de nosso acomodado imaginário sobre arte (e mercado...) significativo aporte cultural que não se viu antes, e que não costuma transitar pelo seletivo circuito das galerias.
Interligando América, Europa e África, a Bienal do Mercosul se reconstrói em bicudos tempos de crise nas empresas brasileiras, em geral incapacitadas ao exercício do mecenato através das indispensáveis leis Rouanet e LIC. Sob tal circunstância, a retomada do evento, após recentes percalços enfrentados pela entidade, mais do que um ato de heroísmo a partir de seu abnegado presidente Gilberto Schwartsmann, constitui uma profissão de fé. Resgatar a Bienal estava a exigir consciência de austeridade sobre seu projeto. E austeridade, aqui, não significa diminuição ou acanhamento; quer apenas significar visão empresarial, o que implica planejamento, drásticos cortes de gastos, rompimento com práticas antigas.
Uma Bienal, para ser importante, não precisa e não deve almejar ser um blockbuster em nome de projetos pessoais. Deve conter densidade em sua proposta e atender a quesitos fundamentais como os de natureza educativa, que são os que remanescem como legado cultural. Deve ser uma empresa afeita à sua realidade contemporânea e, considerando-se que é quase integralmente sustentada pelo público pagador de tributos direcionados através das leis de incentivo à cultura, precisa produzir resultados concretos e deles prestar conta.
Tive a oportunidade de escrever neste jornal pelo menos três artigos que me ajudam a embasar este de hoje. O primeiro, de 21/10/1997, intitulado "Renascimento dos espaços", citava a importância do evento que indiretamente possibilitou a grande restauração do edifício do Margs, assim como a utilização dos ociosos armazéns do cais do porto, do prédio da antiga Mesbla e de tantos outros. Poucos anos depois, se agregariam à Bienal os prédios do Santander Cultural e dos Correios e Telégrafos, hoje Memorial do RS. No segundo, em 15/11/2003, "O delírio do curador", criticava com veemência a afirmação do então curador Nelson Aguillar, de que a Bienal era como um disco-voador que aterrissava pronto aqui para retomar voo sem muito deixar de construtivo em seu rastro. Hoje percebo o que Aguillar queria enfatizar, e devo-lhe atrasado pedido de desculpas se, por minha evidente ingenuidade ou arrogância, eu possa de alguma forma ter-lhe parecido inconveniente. Foi a partir da crítica de Aguillar que a Bienal passou a introduzir atividades preparatórias e antecedentes, predominantemente no que diz respeito ao processo educativo. No terceiro texto, de 28/10/2009, "Sobre arte pública", a propósito de polêmica discussão local sobre esculturas em logradouros de Porto Alegre, eu referia que as Bienais não valem pela consagração do feito, mas pela contestação do status quo.
Passados esses 21 anos, que trazem plena maturidade à Fundação Bienal, rendo-me à evidência de sua importância, sobretudo por ter sido ela a verdadeira instituidora da economia da arte entre nós, fundando um novo mercado de trabalho que inclui as áreas de curadoria, arte-educação, transporte de obras de arte, montagens de exposição e logística em geral, entre tantas outras. Progredimos muito desde então. Sucesso à 11ª Bienal e longa vida à Fundação Bienal do Mercosul!