Até meados do século 19, a Cidade Baixa era tudo que se avistava do alto da colina da Matriz, com os olhos postos no horizonte em direção ao sul de Porto Alegre. Essa vasta região se desdobrava pelas bordas da paisagem, incluindo desde a área próxima ao Gasômetro até a Praça do Portão, passando pelo Areal da Baronesa e pela Olaria do Juca. No dia do aniversário de Porto Alegre, quero convidá-los a dar um passeio por essa que foi a segunda região a se desenvolver na Capital, tal como ela se apresentava dois séculos atrás, guiados por Ary Veiga Sanhudo, autor do livro Porto Alegre – Crônicas de minha cidade.
A denominação era um contraponto à parte alta, que concentrava a zona urbana da Capital, já desenhada com casas, ruas e becos. Por sua vez, a Cidade Baixa tinha aparência bucólica de zona rural, onde deslizava o Arroio Dilúvio – também chamado de Riacho ou Riachinho –, vindo lá das serranias de Viamão. Se considerarmos o mapa atual, após cruzar os bairros Partenon, Santana e Azenha, ele desembocava no Guaíba, em local próximo ao Colégio Parobé. Antes disso, com seus “manhosos braços” (na expressão de Sanhudo), esgueirava-se pelo fundo dos quintais das casinhas que, pouco a pouco, iam sendo erguidas na Rua da Margem, atual Rua João Alfredo (essa configuração foi alterada com a retificação do Dilúvio, que deu origem à Avenida Ipiranga, nos anos 1940 e 1950).
Além de lenha, frutas e hortigranjeiros, os barcos que percorriam o Dilúvio eram carregados de tijolos e telhas da Olaria do Juca, apelido do catarinense João de Souza Costa, que ficava defronte à Várzea (Parque da Redenção), próxima às quadras das Ruas da República e Sarmento Leite. Não à toa, a Lima e Silva era a Rua da Olaria e a Sarmento Leite foi por muito tempo denominada Beco do Juca da Olaria. Outro personagem proeminente era o português João Batista Pereira, o Barão de Gravataí, que enriqueceu com um estaleiro plantado junto ao Guaíba. Após se casar com Maria Emília de Menezes (moça de tradicional família açoriana de Rio Pardo), ele construiu um luxuoso palacete perto do local onde está hoje o Pão dos Pobres. Ali ficou hospedado o Imperador D. Pedro II ao visitar Porto Alegre, em 1845. Na ocasião, para homenagear a família real, a Câmara Municipal mandou abrir duas vias públicas, dando-lhes os nomes de Ruas da Imperatriz e do Imperador (em 1889, com a proclamação da República, passaram a se denominar, respectivamente, Venâncio Aires e Rua da República). O barão faleceu em 1853, tendo sido o solar destruído por um incêndio pouco antes da morte de Maria Emília, em 1888. As terras do casal foram, então, loteadas e ocupadas por gente pobre, ficando conhecidas como Areal da Baronesa.
Outra região famosa da Cidade Baixa era chamada de Emboscadas (em torno da atual José do Patrocínio, entre Alberto Torres e Lopo Gonçalves), “zona de meter medo aos mais valentes”, segundo Sanhudo. Área picotada por sangas, moitas e capões (dizem que, outrora, chegou a ser habitada por jacarés e outros anfíbios), era abrigo de escravos fugidos, perseguidos por capitães do mato “de relho e correntes em punho, desentocando os pobres fugitivos a mando de seus senhores”. Desse caldeirão de circunstâncias históricas, sociais e geográficas, surgiu a atual Cidade Baixa, um dos redutos da cultura popular da Capital, a que prestamos homenagem no Dia de Porto Alegre.