Hoje acordei com saudade da Tia do Garibaldi. Deixa eu explicar melhor: estou falando de Neusa Tormes, a dona do Bar Garibaldi, localizado na Avenida Venâncio Aires, no bairro Cidade Baixa, na Capital. O boteco atraía um público fiel e eclético, graças aos preços acessíveis e ao ambiente despojado e acolhedor. É verdade que o Garibas – com a intimidade de clientes assíduos, era assim que nos referíamos ao estabelecimento – já tinha encerrado as atividades em 2017. Mas, em 25 de maio de 2021, a turma que se habituou a frequentá-lo ficou órfã, pela segunda vez, com a morte repentina da Neusa, aos 58 anos.
É que a Neusa não era uma dona de bar qualquer, de jeito nenhum. A princípio, ela cativou boêmios à moda antiga, apreciadores do clássico martelinho servido a qualquer hora do dia. Nos últimos tempos, havia conquistado o coração de uma galera de estilo alternativo, formada por jovens universitários, ativistas da diversidade sexual e adeptos de bikes, entre outros descolados. Eu, sentado junto ao balcão, como é de minha predileção, apreciava a balbúrdia das diferentes faunas urbanas que confraternizavam não só dentro do bar, mas também espalhadas pela calçada defronte à Praça Garibaldi.
A Tia – como carinhosamente a chamávamos – controlava o ambiente com firmeza e discrição. Por mais eufóricos que estivessem, os fregueses a obedeciam. Talvez porque ela contasse com a silenciosa autoridade conferida aos donos de boteco que não discriminam pela classe social, cor da pele ou orientação sexual. As paredes do Garibaldi expunham essa cumplicidade entre Neusa e a turma que ali batia ponto. Desenhos, fotografias e cartazes de eventos da agenda cultural da cidade, deixados pelos clientes, formavam um mural multifacetado, uma obra coletiva em permanente gestação.
No mais das vezes, Neusa tinha um semblante sereno e não perdia a doçura, até onde a timidez lhe permitia. A Tia era de pouca conversa, mas não amarrava a cara quando alguém puxava assunto no balcão. Aí a pessoa poderia escutar histórias de um tempo antigo, anterior à gestão dela no boteco. Apesar de torcer pelo Internacional, ela contava, orgulhosa, que o hino do Grêmio teria sido composto por Lupicínio Rodrigues em uma das mesas do Garibaldi, nos anos 1950.
– Não posso te afirmar com certeza, mas foi o que me falaram.
Nascida em Tucunduva, no noroeste do Estado, ela chegou a empunhar a enxada para ajudar a família a cuidar da roça. Em meados dos anos 1990, se mudou para Porto Alegre para tomar conta do Garibaldi. Ficou 21 anos como dona do bar. Depois de tanto tempo, tinha dores crônicas na coluna, consequência de tantas noites que varou de pé, atrás do balcão. Queria também descansar a cabeça. Em maio de 2017, abriu mão do ponto. Dois anos e meio depois, ela partiu em silêncio, do jeito dela – morreu de um mal súbito, enquanto dormia. Ficamos nós aqui, cheios de saudade, atentos a uma citação de Simone de Beauvoir que Neusa havia postado no Facebook pouco antes de falecer: “Que nada nos defina, que nada nos sujeite. Que a liberdade seja a nossa própria substância, já que viver é ser livre”.