Como um personagem em busca de um autor, à moda Pirandello, o ator e diretor Júlio Conte está transformando em livro as memórias que cercam a criação de Bailei na Curva, peça de maior sucesso de público do teatro gaúcho, em cartaz há 39 anos — a reestreia está agendada para a próxima quinta-feira, dia 20, no CHC Santa Casa, como parte da programação do Porto Alegre Verão.
Com o título provisório de Diário de Montagem, é um livro de "quase memória, quase-fato, quase-ficção", que toma como base anotações dispersas de um diário pessoal de 1983, ano de estreia da peça (em 1º de outubro, no Teatro do IPE). O ponto de partida é o Réveillon na casa dos pais, em Rainha do Mar, ao lado da atriz Márcia do Canto (com quem estava casado e que participou da primeira montagem de Bailei na Curva) e do filho Pedro. A narrativa da concepção do trabalho se cruza não apenas com registros da efervescência cultural de Porto Alegre e da situação política do país à época, mas também com a aflição diante da saúde frágil da criança, portadora de grave lesão cerebral.
Na busca por um diagnóstico, a princípio com uma atitude negacionista, Conte chegou a desistir dos médicos e procurou ajuda em um terreiro de umbanda. Com voz suave, mas com todas as letras, o pai de santo disse que aquele era o destino de Pedro e nada poderia ser feito:
— Eu fui embora e desisti da umbanda naquela noite.
Apesar das dificuldades, Pedro viveria até os 38 anos, falecendo em 2020.
Até mesmo pela carga emocional que o envolve, o livro está sendo escrito há 10 anos.
— Ao acordar, em certos dias, decido continuar. Depois, canso e paro, resolvo deixar aquelas lembranças quietas — diz.
Mas, agora, a conclusão está próxima: falta apenas finalizar o último capítulo e revisar os demais.
Bailei na Curva apareceu em um tempo de agitação política — em 1983, teve início a campanha pelas Diretas Já (a primeira manifestação foi em novembro), após quase 20 anos de regime militar.
— Não se sabe se foi a última peça da ditadura ou a primeira da democracia — brinca.
Havia também as incertezas quanto ao futuro profissional. Em 16 de janeiro, em uma nota em Zero Hora, Marília Pêra afirmava que estava muito difícil fazer teatro no Brasil.
— Pensei que, se para Marília Pêra já era difícil, o que se poderia dizer sobre o que acontecia em Porto Alegre em 1983? Naquele ano, tínhamos um mercado restrito a poucos e honrosos sucessos de público.
A história de Bailei na Curva atravessa três décadas, acompanhando a trajetória dos personagens (vizinhos de rua) desde a infância, no dia do golpe militar de 1964, até o início dos anos 1980, em meio aos dilemas do futuro. O roteiro foi costurado por Conte a partir de improvisações do elenco original (também integrado por Cláudia Accurso, Lúcia Serpa, Regina Goulart, Cláudio Cruz, Hermes Mancilha e Flavio Bicca). Ele perdeu a noção de quantas pessoas já assistiram e quantos espetáculos foram apresentados — a última placa comemorativa foi a de mil exibições, no Teatro IPE, em 2008, quando se falava em mais de 600 mil espectadores. A música-tema, Horizontes, que cita "um porto não muito alegre", virou um hino informal da Capital.
Psicanalista, além de ator e diretor, para explicar o sucesso, Conte se vale de uma interpretação de Freud segundo a qual todos nós teremos, em algum momento, uma grande intuição, embora não possamos saber quando ela virá.
— É coisa que acontece uma vez na vida. Era para ser a história de uma época, mas a realidade do país faz com que continue viva e cada vez mais atual.