Primeiro cineclube do país a exibir só filmes brasileiros, o Grupo Humberto Mauro pode ser considerado o embrião do cinema gaúcho contemporâneo. Começou com um anúncio de jornal do publicitário Rogério Raupp Ruschel, em 1976, chamando interessados em debater a sétima arte no Clube de Cultura, na Rua Ramiro Barcelos, na Capital. "Éramos um grupo de jovens apaixonados pelo cinema", diz a diretora e produtora Rosangela Meletti, hoje morando em Paris.
Era mais que um cineclube, já que, desde o início, os membros não queriam só exibir e discutir cinema, mas também produzir seus próprios filmes, apesar da falta de recursos e experiência. Entre os participantes, com idades entre 18 e 30 anos, estavam ainda Jaqueline Vallandro (à época, namorada do músico Júlio Reny), Sérgio Lerrer, Alberto Groisman, Álvaro Luiz Teixeira, Nelson Nadotti, Manuel da Costa Jr. e o casal de irmãos Rodolfo e Teresa Lucena, entre outros.
Antes de ligar a câmera, o Humberto Mauro promoveu sessões aos sábados, às 18h (único horário disponível, entre a matinê e a programação noturna), no Cine Bristol (andar de cima do Baltimore), na Avenida Osvaldo Aranha, graças à amizade do pai de Rosangela, o radialista Osmar Meletti, com Jaime Charak (responsável pela administração da sala). Na programação, estavam cópias de filmes com certificado de censura vencido, resgatadas em latas empoeiradas no escritório da distribuidora Difilm, dois dias antes da implosão do prédio, no Alto da Bronze. A rigor, não poderiam ser exibidas (não esqueçamos que o Brasil vivia, à época, sob regime militar). Como a rapaziada não tinha a chave da sala que ocupava no Clube de Cultura, foram guardadas em casa, por precaução, literalmente embaixo da cama.
O acervo tinha relíquias como Terra em Transe, de Glauber Rocha, que atraiu 500 pessoas, obrigando a turma a transferir, por questão de segurança, a exibição para o Baltimore (sala maior). As cópias clandestinas apresentavam armadilhas: em O Padre e a Moça, de Joaquim Pedro de Andrade, a palavra "fim" apareceu no meio do filme — como não havia indicação da ordem nas latas, a terceira parte foi exibida antes da segunda. Menos mal que, no dia seguinte, foi realizada nova sessão no Clube de Cultura, dessa vez, na sequência correta. Empolgados, os cineclubistas abriram sessões nos sábados à meia noite. Em uma noite gelada do inverno gaúcho, ali pelas 2h, quando acabou Sagarana, o Duelo, de Paulo Thiago, um dos espectadores, encarangado, não conseguiu erguer-se da poltrona e desceu as escadas do Bristol no colo de dois cineclubistas.
— Como ele custou a se recompor, levamos o sujeito até o edifício onde morava, na subida da Rua Fernandes Vieira — conta Sérgio Lerrer, que produziu Verdes Anos, longa-metragem em 35mm, marco do cinema gaúcho, em 1984.
Mas o que mais empolgava o pessoal era a prática do cinema. "Todos tinham roteiros para filmar com atores e, na falta de profissionais, nós mesmos éramos os intérpretes. Um fazia a fotografia, outro produzia, todos participavam", relata Nelson Nadotti, em Cinema no Rio Grande do Sul, coletânea organizada por Tuio Becker, em 1995. A opção barata e disponível era o Super-8 (bitola menos sofisticada da Kodak). A precariedade técnica era compensada com ousadia e criatividade e, logo, já tinham produção para participar do Festival de Gramado. O ápice do vanguardismo é Maria das Dores, em que o diretor Alberto Groisman (antropólogo, hoje radicado em Florianópolis) "aparece de costas para a câmera, durante três longos e insuportáveis minutos, ao som de uma cacofonia", descreve Nadotti. Ninguém entendeu nada.
— Tem quem curte — comentou uma espectadora, ao final da exibição em Gramado, em 1978.
O Humberto Mauro, que durou até 1980, também promoveu palestras e cursos com cineastas como Ruy Guerra, Sérgio Santeiro e Jean-Claude Bernardet. Em um dos encontros, Nadotti — que trabalha no time de criação de teledramaturgia da Globo, desde 1983 — conheceu Giba Assis Brasil (um dos fundadores da Casa de Cinema de Porto Alegre, em 1987). Juntos, eles dirigiram Deu Pra Ti, Anos 70, primeiro longa-metragem rodado em Super-8 no Estado, que estreou no Clube de Cultura, em 1981, com extensas filas na calçada da Ramiro Barcelos. Estava criado o cinema gaúcho contemporâneo. O resto é história.