“Desejaria viver em Júpiter, onde as almas são puras e a transa é outra.”
(Trecho de Vazio na Carne, poema de Henrique do Valle)
O dia amanhecia quando o Exército invadiu o sítio de João Goulart (que acabara de ser deposto) no começo de abril de 1964, em Jacarepaguá, no Rio de Janeiro. Lá, os militares não acharam o presidente da República, e sim o cunhado dele, o jornalista João Luiz Moura Valle (responsável pela redação dos discursos presidenciais), com a esposa Tarcila (irmã de Jango) e os filhos Vicente Luiz, de oito anos, e José Henrique, de seis.
Consta que, enquanto observava os pais sendo conduzidos com as mãos levantadas para o alto até a viatura militar, o caçula viu se aproximar um soldado com a metralhadora apontada para o cão da família.
— Qual é o nome dele?
— Russinho – respondeu o menino.
Em tempos de confronto ideológico, a resposta teria soado como provocação (pela referência à Rússia, símbolo do comunismo) aos ouvidos do militar. Algumas versões indicam que o soldado só ameaçou, outras apontam que, de fato, teria fuzilado o cachorro. Seja como for, o episódio ficou marcado de modo traumático na memória de Henrique do Valle (como ficou conhecido nos meios literários), poeta nascido no Rio de Janeiro, que passou boa parte de sua curta existência em Porto Alegre. De barba e cabelos compridos, aparentemente não se diferenciava de grande parte dos jovens que circulavam pela Capital nos anos 1970, mas combinava — como poucos — uma carga de hipersensibilidade com o talento de se expressar com as palavras. Hipersensibilidade que era também física:
— Sofria de alergia e, por isso, antes de usar uma calça nova, entregava para o irmão gastar até amaciar o tecido — diz a cunhada Marta Schönfeld.
Embora tenha estreado aos 14 anos — em julho de 1972, durante o exílio da família em Buenos Aires, com A Espessa Verdade, obra bilíngue de Ediciones Subterráneas — na juventude, preferia ocultar dentro de um armário a poesia intimista e, ao mesmo tempo, social que escrevia. Até que, aos 17 anos, criou coragem para mostrá-la a Carlos Jorge Appel, da editora Movimento, pela qual publicou Vazio na Carne (1975), Anotações do Tempo (1979) e Do Lado de Fora (obra póstuma de 1981).
— Logo percebi que estava diante de uma pessoa retraída e insegura, com muitas dúvidas a respeito do valor de sua obra. Nós é que insistimos para que a divulgasse, e acho que fizemos bem — conta Appel.
Não bastasse a percepção afiada das mazelas do mundo, o poeta abusava do consumo de drogas, o que o deixava ainda mais arredio às regras de uma sociedade que recomendava “cabelo bem penteado, pasta de executivo e nenhuma indagação no espírito”, como assinalou o ex-governador do Estado, Tarso Genro, na introdução de Do Lado de Fora.
Henrique já havia passado por 10 internações em clínicas psiquiátricas, quando morreu em janeiro de 1981, pouco antes de completar 23 anos. As circunstâncias da morte já foram descritas como suicídio ou overdose, mas Marta Schönfeld assegura que teria sido acidental, uma reação alérgica à combinação de álcool e medicamentos. Algum tempo antes, ele havia deixado um envelope com 31 poemas embaixo da porta do amigo e também poeta Jorge Finatto, com um recado escrito à mão: “Espero que aproveites estes textos”. Mais de três décadas depois, em 2014, o material foi publicado em Henrique do Valle: Obra Reunida, com organização de Paulo Seben e edição do Instituto Estadual do Livro.
— Henrique do Valle passou pelo mundo como um anjo caído do céu — conclui Finatto.