Em 24 de junho de 1819, às margens do Rio Uruguai, no Passo de São Isidro, era preso, por tropas portuguesas, Andrés Guacurarí Artigas. Terminava, assim, a saga de cinco anos deste índio guarani, nascido em São Borja nos últimos decênios do século 18, em quem os povos indígenas do vasto território das Missões jesuíticas e adjacências, que compreendia áreas do Rio Grande, do Uruguai, e de províncias argentinas, depositavam as últimas esperanças de união e liberdade sob a bandeira do federalismo. Modelo de inconformismo e rebeldia surgido das ruínas, da decadência e da dispersão dos povos missioneiros, Andresito Artigas, como era chamado, testemunhara e fora vítima, desde tenra idade, dessa tragédia regional que convulsionava o sul do continente. Mas, afinal, quem era esse Andresito que em cuja figura mesclavam-se lenda, mito e realidade? Sabe-se que, recém-saído da adolescência, já se entregara à causa que seria a sua glória e seu fim: a luta em prol de uma sonhada liga ou federação dos Povos Livres, que emancipasse todos os seus irmãos privados de seu patrimônio natural, de sua cultura e tratados como escravos. Nessa verdadeira obsessão, juntou-se ao prócer oriental, general José Gervásio Artigas, o qual o reconheceu pelos invulgares dotes de capacidade militar, dedicação, fidelidade e discernimento político. Com tais credenciais, logo mereceu de dom José o tratamento de filho, adotando desde então o sobrenome com o qual passaria para a história: Andresito Artigas.
Ungido com esse nome, prestígio em franca ascensão, Andresito passa à ação concreta e, mobilizando as reservas de heroísmo adormecidas em sua gente, sai a afincar o estandarte libertário no solo de uma pátria nativa e imaginária, percorrendo extensa e sofrida trajetória, enfrentando poderosas forças entre vitórias e derrotas, perseguições e traições. Sem esmorecer, é o comandante, o caudilho, o administrador, sempre a reorganizar e animar seus guerreiros e lançá-los à luta. Em um tempo de barbárie, submete e governa províncias e regiões, ora castigando severamente a terratenentes e aristocratas inimigos, ora assistindo seus semelhantes, dos quais recebe reconhecimento e admiração. Transformado em símbolo, o povo maltrapilho o segue de forma quase reverencial, o que logo atrai contra si o redobrado poder dos exércitos argentino e brasileiro, que não lhe darão trégua ao longo de cinco anos.
É no fim deste percurso, desta guerra de redenção e resgate que se desenha totalmente malograda, que forças portuguesas irão persegui-lo e surpreendê-lo a liderar o que restava da outrora flamante e então já fluida e esgotada cavalaria de pura cepa indígena numa fuga desesperada tentando varar o Rio Uruguai, no Passo de São Isidro, rumo à costa argentina. Cercado em companhia de poucos seguidores, não tem como resistir e se entrega. A seguir, conduzido em terrível marcha a pé até Porto Alegre, será embarcado para o Rio de Janeiro e, lá, posto no insalubre calabouço da Ilha das Cobras e, depois, na fortaleza de Santa Cruz.
A partir daí, recai um manto de mistério sobre o destino de Andresito. Inúmeros historiadores irão se contrapor na tentativa de elucidar o que realmente lhe aconteceu. São versões contraditórias, inverossímeis algumas, outras mais ou menos confiáveis, à falta de provas cabais. São duas as hipóteses: depois de liberto, graças a tratativas diplomáticas, doente e irreconhecível, teria morrido no Rio de Janeiro, após se envolver em uma rixa, ou sucumbido em total anonimato assim que desembarcou no porto de Montevidéu.
Hoje, finalmente, e aos poucos, Andresito vem sendo reconhecido como um herói de seu tempo e dos povos indígenas. É como se o véu que ainda encobre o vulto enfermiço e abúlico de suas derradeiras notícias estranhamente emprestasse cada vez mais impulso à legenda de sacrifícios que busca coroá-lo ao estigmatizar o extermínio de uma raça em sua higidez e plenitude. Assim procederam oficialmente Argentina e Uruguai, duas das nações que tiveram a honra de vivenciar a gloriosa marca de seus passos, ao lhe homenagear por meio de comemorações cívicas, de pesquisas e livros, que lhe exaltam o exemplo, e de estátuas que o eternizam nos bronzes da glória. Mais do que isso: a primeira o proclamou “herói nacional” e lhe deu post mortem o posto de general, em 2014; o segundo, o distinguiu em 2015 com homenagens semelhantes. Espera-se que um dia também o faça o Brasil, talvez se espelhando no exemplo solitário de São Borja, berço natal de Andresito, cuja Câmara Municipal, orgulhosa de seu filho, promoverá uma sessão solene nesta segunda-feira (24), em memória do epílogo do Passo de São Isidro
Colaboração de Fernando O. M. O’Donnell, membro emérito da Academia Rio-grandense de Letras