O sonho de um jornalista, historiador e pesquisador é encontrar uma informação inédita, um documento antigo, algo, enfim, que lhe permita descobrir novos fatos e transformá-los em história. Foi o que aconteceu com Nelson Adams Filho ao encontrar um livro, ainda sem tradução para o português, escrito por um padre alemão que relata a interferência do nazismo e a tentativa (quarta e última) de implantação de um porto marítimo e uma ferrovia em Torres.
A pesquisa sobre o Torres Projekt – Hafen und Eisenbahnbau (Projeto Torres – Porto e Ferrovia) faz parte do livro Piratas, Corsários, Naufrágios e Canibalismo em Terras e Mares do Sul (Editora Edigal, 245 páginas), lançado na quinta-feira última, na Feira do Livro, sendo um capítulo especial intitulado como O Porto de Torres, do Império ao Nazismo. Ao encontrar a obra de Johannes Beil, escrita em 1967, Nelson descobriu o fio da meada.
A Alemanha queria construir em Torres um porto marítimo e uma ferrovia ligando-a ao Paraguai (que não possui porto). Esse complexo fazia parte dos planos do governo do primeiro-ministro Heinrich Brüning, o último da República de Weimar (1919-1932), com o objetivo de combater a inflação galopante na Alemanha, sanar as finanças e conseguir empregos para jovens alemães no Brasil.
Brüning tinha nas exportações o remédio para os males da economia alemã. Para os empresários alemães em Porto Alegre (que não eram poucos), o projeto representava recebimento e escoamento mais rápido e barato de matérias-primas e de produtos acabados, eliminando a rota entre a Capital e Rio Grande pela Lagoa dos Patos.
Em Porto Alegre, o cônsul alemão no RS, Gottfried Walbeck, tinha ligação direta com o gabinete do ministro. O padre Beil (ordenado na Alemanha em 1928) chegou ao Brasil em 1931 e teria a missão de coordenar a parte assistencial e espiritual dos trabalhadores que viriam da Alemanha, então com 6,5 milhões de desempregados.
"Tudo estava pronto para a assinatura do contrato. Então, Brüning foi deposto", escreveu o padre em seu livro, no capítulo intitulado Das Torresprojekt (tradução do historiador catarinense Valberto Dirksen, do IHGSC, especialmente para a pesquisa).
Torres já tivera outras três tentativas de implantação de um porto marítimo. Era o local apropriado. Mas Rio Grande tinha mais poder político, econômico e histórico, pois possuía porto desde 1737, com a chegada de Cristóvão Pereira de Abreu.
Na primeira tentativa, em 1875, o engenheiro hidráulico inglês Sir John Clarke Hawkshaw, contratado 14 anos antes pelo Império para dar seu parecer, vaticinou: "...as obras da barra (Rio Grande), além de muito dispendiosas, são muito inseguras quanto aos resultados para justificar sua execução. Projetei um porto em Torres...". A opinião de Hawkshaw, 142 anos depois, continua certa.
O porto de Rio Grande sofre devido ao assoreamento da barra, permanentemente exigindo milhões de dólares para fazer o desassoreamento. A tentativa de 1930 contava com o apoio de Getúlio Vargas, então chefe do Governo Provisório, e do interventor e depois governador do RS, Flores da Cunha. Ele era apaixonado pelo projeto do porto e da ferrovia de Torres, que fazia parte do primeiro plano viário do Estado desde 1913, no governo de Borges de Medeiros. Por quase 20 anos, Flores da Cunha se interessou e defendeu o porto e a ferrovia de Torres. Em 1932, estava tudo pronto para a assinatura da documentação. Getúlio Vargas, a essa época, "namorava" com a Alemanha. Aqui, na Capital, havia uma comissão especial para as tratativas, segundo relatos do padre Beil.
Brüning caiu em 30 de maio de 1932. Em 30 de janeiro de 1933, Hitler chegou ao poder. "Esperou-se... e nada acontecia. Hitler tinha assumido", escreveu Beil, pressentindo, de longe, que algo havia.
De Porto Alegre, ele seguiu para Blumenau, Santa Catarina, onde instalou o Heimat-Timbó (Lar para Jovens). Posteriormente, deslocou-se para Ubatuba, São Paulo, onde é conhecido como padre João, com vasta obra social.
Morreu em São Bernardo do Campo, em maio de 1980, aos 76 anos, deixando um legado social e esse livro, aqui inédito. Toda a documentação do Torres Projekt encontra-se na Biblioteca de Koblenz, na Alemanha, guardada junto aos documentos da República de Weimar. Nelson examinou o que lhe permitiu começar a montar o quebra-cabeças. Muitos outros fatos, dados e situações estão sendo pesquisados. Um deles é a forte interferência do nazismo no RS entre 1931 e 1933.
O cônsul Walbeck (antinazista ferrenho, assim como o padre Beil) sofreu nas mãos dos nazistas no Sul e foi substituído pelo ex-embaixador da Alemanha no Brasil Enrich Ried (nazista e amigo de Flores da Cunha), e, em 1933, foi transferido para Lyon, na França, onde morreu misteriosamente pouco tempo depois.
Ainda existem muitos pontos obscuros a serem pesquisados, como a possível interferência dos Estados Unidos em não permitir a concretização do complexo porto-ferroviário, que seria uma espécie de cabeça de ponte alemã no Sul.
Mas existe uma certeza: um porto e uma ferrovia em Torres não estavam nos planos de Hitler. Ao menos nos iniciais. Depois... quem sabe?
Colaborou Nelson Adams Filho