A técnica responsável pela Vigilância em Influenza e Hepatites Virais da prefeitura de Porto Alegre, a dentista Letícia Vasconcellos Tonding, 51 anos, assumiu uma função especial desde o início da pandemia de coronavírus. Foi ela quem ligou para o primeiro caso com laudo detectável para covid-19 na Capital. Desde então, está à frente de um grupo de cinco profissionais capacitadas para acompanharem por telefone a evolução dos infectados pelo vírus na cidade.
Até 15 de março, Letícia desempenhou a função sozinha. Aos poucos, aprendeu a lidar com a situação de ligar para o paciente confirmando ou não a presença da doença. A maioria dos pacientes, comenta a técnica, já espera pelo resultado positivo dos testes, realizados pelo Laboratório Central do Estado (Lacen). Mas quem recebe retorno negativo, revela, também costuma ficar preocupado, afirmando que gostaria de ter a covid-19, na expectativa de gerar anticorpos e ficar imunizado no futuro.
— Uma das únicas pacientes que chorou na primeira ligação foi uma jovem na faixa dos 20 anos. Ela estava nervosa, inicialmente. Com o passar dos dias, ficou mais tranquila — conta Letícia.
Da primeira ligação até o 14º dia de isolamento recomendado, o paciente recebe pelo menos sete telefonemas de monitoramento. O acompanhamento ocorre até a alta do infectado pelo vírus. Um médico da prefeitura auxilia na cobertura, atendendo pelo telefone casos que necessitem de orientações médicas. Por ligar mais de uma vez para os pacientes, Letícia percebeu que, depois do impacto da notícia, eles levam alguns dias para tomarem consciência da situação. O isolamento em uma casa ou na companhia de outras pessoas acaba causando a mesma ansiedade, seja por não falar pessoalmente com alguém durante dias ou pelo medo de contaminar uma pessoa próxima.
— Lá pelo quarto, quinto ou sexto dia, muitos começam a chorar logo que atendem o telefone. Mais do que me contar como estão, eles querem desabafar. Deixo falar. Algumas ligações duram até 15 minutos. Precisamos ter esse tempo para eles — confessa Letícia.
Em uma das situações, um idoso positivo para covid-19 já não suportava mais não ver e abraçar os netos. A técnica explicou a necessidade de aguardar o período recomendado. Ele, então, pediu um laudo ao final das duas semanas para ter a certeza de que não passaria a doença aos netos. O pedido não pôde ser atendido por não fazer parte dos protocolos.
— Eu sentia a angústia na voz dele e não podia demonstrar tristeza. Estava naquela ligação para transmitir tranquilidade a ele. Tem horas em que precisamos ser fortes, mesmo sendo humanos — desabafa Letícia.
Grupo ganha reforço
No início da década de 1990, a técnica atuou no atendimento a vítimas de HIV quando ainda não havia medicamentos para combater a doença. Na época, ela era coordenadora da Saúde do Trabalhador na prefeitura e viu muitos colegas e pacientes definharem em poucas semanas. Mas nem essa experiência dolorida de décadas atrás ameniza situações vividas por ela em meio à pandemia.
Eu sentia a angústia na voz dele e não podia demonstrar tristeza. Estava naquela ligação para transmitir tranquilidade a ele. Tem horas em que precisamos ser fortes, mesmo sendo humanos
LETÍCIA VASCONCELLOS TONDING
Técnica responsável pela Vigilância em Influenza e Hepatites Virais da prefeitura de Porto Alegre
Em um dos casos mais complicados até agora, Letícia não suportou a pressão de se manter firme durante o desabafo de uma paciente. Recorda de ter se identificado com a situação vivida pela mulher de meia idade. Quando desligou o telefone, deixou rapidamente a sala de atendimento e se trancou no banheiro mais próximo para chorar. A ideia era descarregar toda a emoção naquele momento. Até hoje, porém, ela embarga a voz lembrando da história, que prefere não compartilhar.
Com o aumento dos casos em Porto Alegre, Letícia ganhou o reforço de mais uma colega em 15 de março. Desde 1º de abril, três residentes da Escola de Saúde Pública – duas da área da psicologia e uma da assistência social – juntaram-se ao grupo. Mas a demanda tem crescido diariamente, e a técnica prevê que mais funcionários deverão chegar nas próximas semanas.
Até as 16h desta quinta-feira (2), 159 pacientes seguiam em monitoramento pelo grupo, que ao longo do dia havia realizado cerca de 60 ligações. Hoje, já não é mais possível um mesmo funcionário acompanhar o paciente do início ao fim do tratamento. As cinco se revezam na função, de acordo com a situação do dia.
É comum que as funcionárias façam mais do que as sete ligações recomendadas para cada paciente ao longo dos 14 dias de isolamento. Se um paciente tem alguma dúvida que não possa ser respondida na mesma hora, o retorno virá o mais breve possível. Mais do que uma voz do outro lado da linha, a meta é ser também um ouvinte para quem enfrenta uma situação nova para a humanidade.