Estávamos a 50 quilômetros de Dire Dawa, na Etiópia, quando o trem atingiu uma vaca; o impacto foi anunciado por uma brusca queda na velocidade e uma forte sacudida.
Foi só mais tarde que um dos nossos companheiros de viagem etíopes nos disse que tínhamos batido em algum animal errante. Os passageiros – entre eles meu fotógrafo, Marcus Westbergand, e eu – deram de ombros.
Em nove anos desde minha primeira visita, muito mudou na Etiópia. A economia teve uma grande expansão, com crescimento constante de 10 por cento ao ano, levando à elevação da expectativa de vida, dos padrões sociais e do produto interno bruto. Em setembro, uma reconciliação com a Eritreia, vizinha do norte, trouxe paz à fronteira que ambas as nações compartilham pela primeira vez em mais de 20 anos.
Entretanto, para cada dois passos adiante, houve um para trás. Com o milagre econômico interrompido pela seca de 2016 e manifestações antigoverno que eclodiram na importante região de Oromia no mesmo ano, o ritmo de mudança na Etiópia alcançou um estágio de contingência e desconforto. A queda do voo 302 da Ethiopian Airlines, em março, matando 157 pessoas de 35 países, trouxe à tona o trauma do fim do século 20, quando a Etiópia era sinônimo de tragédia.
Ainda assim, o que me trouxe de volta parecia ser a materialização concreta do progresso: a Etiópia, agora, tem um trem de última geração. Em 2011, o governo anunciou que uma nova ferrovia eletrificada seria construída entre Adis Abeba e o Djibuti, o pequeno país vizinho, usando o dinheiro e a expertise dos chineses. Cinco anos e 3,4 bilhões de dólares depois, o primeiro trem de carga fez a viagem de 760 quilômetros, revolucionando o acesso da Etiópia, que não tem saída para o mar, ao Mar Vermelho, onde o Porto de Doraleh, no Djibuti, processa 95 por cento do seu comércio internacional.
Na véspera do dia em que pretendíamos viajar, fomos comprar os bilhetes na Estação Lebu. O atendente do guichê mostrou-se chocado quando lhe pedi duas passagens para a cidade de Dire Dawa. Ainda mais desconcertante do que a reação do homem era o papel grudado no vidro. Culpando "cidadãos locais" pelos transtornos recentes, a nota era uma forma explícita de dissuadir viajantes: "Atenção: pense duas vezes antes de adquirir os bilhetes."
As palavras de despedida do vendedor: "Traga comida."
Por isso, ao avistar o trem ali na plataforma na manhã seguinte, o alívio não foi pequeno. A origem chinesa foi confirmada pela etnia do "capitão" que conduzia as pessoas a bordo e pelos tíquetes cor de salmão, iguais aos emitidos pelo Sistema Ferroviário Nacional da China.
Uma hora depois, apreciávamos a paisagem subsaariana em um movimento rápido e incessante. O trem era uma besta estéril e apitou sua chegada a Dire Dawa às 15h27, oito minutos antes do programado.
Um vilarejo rural até 100 anos atrás, Dire Dawa transformou-se, em um século, em um importante polo de trânsito para os produtos de exportação da Etiópia, especialmente o khat, um estimulante fitoterápico leve cultivado nas montanhas da região.
Dire Dawa marca a metade do caminho e é a segunda maior cidade da Etiópia, fato que deve à linha de trem construída pelos franceses e cujo funcionamento tem sido intermitente desde a inauguração em 1917. Um vilarejo rural até 100 anos atrás, Dire Dawa transformou-se, em um século, em um importante polo de trânsito para os produtos de exportação da Etiópia, especialmente o khat, um estimulante fitoterápico leve cultivado nas montanhas da região. Mas o lugar que mais nos interessava ficava 50 quilômetros a leste, uma viagem que faríamos de micro-ônibus. O trem tinha nos oferecido a chance de visitar o remoto território islâmico de Harar.
Foi desconcertante, após ter experimentado a modernidade do trem, fazer uma imersão em Harar Jugol, aproximadamente 50 hectares de ruelas muito próximas umas das outras cercadas por paredes de 4,5 metros, considerado o quarto lugar mais sagrado do islã. Ficamos hospedados em um "gegar", uma casa tradicional harari transformada em casa de hóspedes, onde dormimos em um sótão antes usado para armazenar grãos.
A Velha Harar era uma preciosidade de museus curiosos e santuários de muftis. Mas muito mais sedutoras eram as ruas. A partir da praça principal, nossa rota preferida para explorar o labiríntico local era pela Makina Girgir, a rua dos alfaiates, assim denominada pelas máquinas de costura ali posicionadas. No mercado dos temperos, montes de pimentas secas faziam os clientes espirrar, enquanto, no mercado de carne, turistas perplexos se protegiam de milhafres-pretos que sobrevoavam e mergulhavam para pegar pedaços de carne de bode das mãos dos feirantes. As paredes de todas as ruas estavam com mais vida, pois tinham sido pintadas de rosa e azul para celebrar o Eid.
Ao cair da noite, dois homens saíram das muralhas da cidade carregando uma cesta com restos de carne, em seguida agacharam-se em um descampado e gritaram em direção a um matagal. Oito hienas emergiram das sombras para comer das mãos deles. Esse ritual noturno tornou-se uma atração para os turistas, que se reúnem para tirar fotos sob a luz dos faróis dos carros. Nosso tradutor, Emaj, contudo, nos disse que a prática tem também um objetivo mais sobrenatural: manter os cães por perto por causa dos fantasmas. As hienas possuem entradas próprias para a cidade. Dizem que elas são as únicas criaturas capazes de ver e engolir Djins, espíritos dos antigos habitantes de Harar, que podem, às vezes, ser maus, e percorrem as ruelas protegidos pela escuridão.
Antes de embarcar novamente no trem em direção à cidade de Djibuti, visitamos Dire Dawa. Na praça principal, estava a antiga Chemin de Fer, a estação ferroviária da companhia francesa que construiu e operou uma linha de trem no país.
Espalhados por meio hectare de equipamentos ferroviários enferrujados, encontramos centenas de composições de trens há muito corroídas e vagões de madeira desmantelados e mofados. Um depósito de ferramentas gigante, cheirando a poeira e óleo, estava repleto de tornos de mais de 50 anos. Atrás dele, encontramos um par de locomotivas quadradas. O condutor nos autorizou a subir, mas sua serenidade foi afetada quando sucumbi à tentação e puxei uma alavanca do painel de controle. O motor dormente soltou um longo sopro despressurizador e tremeu nos eixos. O condutor, então, deu a entender que, talvez, fosse hora de partir.
De volta ao trem moderno, sentado no vagão hermético, foi difícil não sentir saudades de todo aquele ferro-velho.
No dia seguinte, embarcamos em um caminhão, com um guia chamado Abdallah Ali Moussa, e nos embrenhamos pelo deserto. Dirigimos por oito horas, através de pilhas de destroços e montanhas marcianas, até chegarmos a um planalto seco. Ali, próximo do ponto geotermal da junção tripla de Afar, onde convergem três placas tectônicas, uma floresta de pináculos foi avistada no horizonte. Havíamos chegado ao Lago Abbe.
Ou, pelo menos, ao que costumava ser o Lago Abbe. Tudo que podia ser visto do lago era uma mancha azul-marinho bem longe ao norte. Abdallah nos contou que um projeto de irrigação recente desenvolvido pelo governo etíope no Rio Awash tinha prejudicado o fluxo de água para o lago. O nível de água, sempre submetido às flutuações sazonais, agora havia recuado drasticamente, tornando marrom a paisagem transcendental de torres calcárias pela qual o Abbe é famoso. Em vez da cena que tínhamos imaginado, grupos de flamingos em volta de uma costa de topázio, encontramos uma bacia de poeira.
As fumarolas do Abbe, constituídas ao longo de milênios pela adição de depósitos minerais calcários, ainda brindavam os visitantes com um panorama fascinante. Nas áreas mais densas, formavam cânions de cera derretida.
Voltamos para a estrada na manhã seguinte a caminho do Lago Assal. Paramos em um assentamento tribal do povo Afar, criadores de animais nômades que moram nas terras áridas e erodidas do leste do Chifre da África. O primo de Abdallah morava lá com a esposa e os sete filhos e nos convidou para visitar sua tenda, uma construção simples de folhas de palmeira trançadas colocadas sobre um andaime feito com varas desbotadas pelo sol.
Quando saí, piscando por causa da luz do sol, um grupo de crianças tinha se formado na porta. Com o público a postos, o mais velho do grupo abriu a mão para revelar alguns fragmentos de obsidiana que tinha coletado. As crianças ao redor dele abriram um sorriso tímido. Elas queriam me mostrar as belas pedras.
Em algum lugar no meio do deserto, o trem saiu a toda a velocidade. Mas, pelo menos por enquanto, a modernidade ainda tem um longo e lento caminho a percorrer.
Por Henry Wismayer