Do alto de um apartamento no 13° andar de um prédio às margens do Rio Tramandaí, em Tramandaí, a vizinha Imbé surge emoldurada pelas janelas da residência. Embora a vista e a localização sejam privilegiadas, entre dezembro e fevereiro, o casal de aposentados Paulo e Vera Grassi fecha as portas e migra para o outro lado da ponte, onde mantém uma casa afastada do burburinho. Moradores do Litoral Norte desde 1999, sempre se opuseram àqueles que criticavam a "invasão" das praias durante a temporada. Neste ano, no entanto, veem o movimento com ressalvas.
— Sempre batia boca no Facebook com as pessoas que não queriam que os veranistas viessem para cá no período. O pessoal daqui e o que tem vindo (passar mais tempo) é de mais idade, eles se "comportam". Mas nos finais de semana e feriadões é muita gente, e eles desrespeitam. Eles vêm, abusam e nós sofremos. Nós queremos que eles venham, mas que respeitem: usem máscaras e não se aglomerem — diz Paulo, ressaltando que o casal também adota algumas estratégias para fugir da exposição desnecessária. — Evitamos ir ao mercado nos feriados e nos finais de semana porque tem muita fila. Vão para o mercado com toda a família. Entram todos: jovens, velhos, pessoas com dificuldade de locomoção. Mas para que isso se estão pedindo para não aglomerar e eles fazem justamente o contrário?
Tática semelhante é usada pela família de Helen Herzer Habigzang, que mora em Capão Novo com o marido, Gustavo Habigzang, e o pequeno Theodoro, quatro anos: supermercado somente em dias de semana, em horários de movimento baixo e apenas uma vez ao longo dos dias. Para os meses de alta temporada, o casal já planejou limitar ainda mais as saídas.
— Vou limpar a piscina e ficar em casa — sentencia Gustavo.
Realmente, o pessoal que vem veranear está muito despreocupado. E a gente só em casa, se cuidando. A gente vai ter que ficar mais recluso para os veranistas aproveitarem
HELEN HERZER HABIGZANG
Moradora de Capão Novo
A cautela se justifica. Nos feriadões e finais de semana, a família notou a movimentação atípica para a época e um comportamento que se repete: aglomerações e ausência de máscaras entre os visitantes.
— Como a cidade é muito pequena e vem gente de todos os cantinhos do Rio Grande do Sul, lota. Depois, eles vão embora e o que sobra para gente é um hospital com pouquíssimos recursos de leitos. Realmente, o pessoal que vem veranear está muito despreocupado. E a gente só em casa, se cuidando. A gente vai ter que ficar mais recluso para os veranistas aproveitarem— lamenta Helen.
Proprietário de uma ferragem em Tramandaí desde 1995, André Trindade Rodrigues transita nos dois lados. Ora comemora os bons números do negócio em 2020, ora se preocupa com a falta de estrutura para receber a multidão que deve ir ao Litoral no veraneio:
— Do ponto de vista comercial, a expectativa é de que tenhamos o verão de maior movimento desde nossa abertura. Agora, como morador, é um pouco assustador. A cidade não tem estrutura para receber 200 mil, 300 mil pessoas.
O empresário se soma ao coro de outros moradores, que indica um desrespeito maior às normas sanitárias por parte daqueles "veranistas temporários", ou seja, que não têm residência no Litoral.
Em 17 de março, Marisete Lopes Silveira, proprietária de um quiosque na beira da praia de Imbé, fechou seu comércio. Pedras instaladas em todos os acessos à orla foram colocadas para impedir a circulação de pessoas no local. Apesar do fechamento, as contas de água, luz e segurança privada continuaram chegando.
— Tudo foi prejuízo, a gente tem expectativa de que o verão vai ser bom e melhorar isso. Amenizar um pouco — fala a comerciante.
Com o passar dos meses, vieram as flexibilizações e a permissão para reabrir o negócio. A retomada do movimento impulsionou a abertura do quiosque 20 Ver no feriado de Nossa Senhora Aparecida, em outubro. O feriadão de Finados, em 2 de novembro, foi o terceiro final de semana de operação do quiosque, que diminuiu o número de mesas na faixa de areia, trocou o porta-canudinhos das mesas por vidros de álcool gel e passou a exigir o uso das famigeradas máscaras para ingressar no espaço fechado.
Animada com a perspectiva de um veraneio acima da média dos outros anos, Marisete sabe que a garantia do seu sustento também depende do comportamento dos frequentadores da praia:
— Pra nós é bom, é nosso ganha pão, mas a gente também tem medo. Não quer que o pessoal venha só nesta data, dê um aumento de casos e tranque tudo no resto do verão.
Migração tem reflexos no consumo local
— Só deixamos as paredes. Fizemos uma casa nova — diz o advogado Mauro Glashester, apressando-se para mostrar o resultado final da reforma feita ao longo do ano na casa em Atlântida.
Decorada e "arquitetada" por Mauro e pela esposa, a também advogada Claudete Glashester, a repaginada começou no início de julho e terminou no último dia de setembro. Mexeram em tudo. O investimento faz parte do planejamento da dupla para os anos que virão: viver na "ponte" Atlântida-Ibiraquera, em Santa Catarina. A ideia também é estender mais as estadias no litoral gaúcho durante a temporada, aliando qualidade de vida a um custo relativamente baixo.
Por conta da demanda por produtos e serviços relacionados a obras e reformas, o casal ainda tem algumas pendências para resolver na residência. Em setembro, por exemplo, Claudete procurou os serviços de um estofador. O prazo dado para a entrega foi entre o fim de outubro e começo de novembro. Com a demora, ela procurou outro profissional, que garantiu a finalização em duas semanas:
— Fechou duas semanas e nada. Na terceira, ele disse que não haviam entregue o tecido. Quando deu um mês, informou que não teria o material. Levei em um terceiro estofador, que prometeu entregar em 14 dias. Mas ouvi de todos que os serviços de agora só serão entregues em janeiro.
Na beira-mar de Imbé, a empresária Maricelsa Klein, conhecida como Chica, tem dificuldade em encontrar itens como pisos e tintas específicas, e tem de lidar com o atraso na entrega de outros tantos, como aberturas, para concluir a reforma da casa:
— Queria para dezembro, mas não tem como, vai levar 70 dias para me entregar.
Para o proprietário da ferragem de Tramandaí, é evidente que os veranistas estão aproveitando a pandemia para promover melhorias em seus imóveis. Trabalhar de casa abriu um leque de possibilidades para que aqueles que têm residência no Litoral, fazendo com que fiquem mais na praia.
Na outra ponta, muitos já aposentados estão mudando definitivamente para o Litoral Norte. Levantamento da Amlinorte entregue em julho ao governo do Estado aponta que a população da região, que contempla 23 municípios, pulou de 400 mil para 700 mil. Prova disso é o maior consumo de energia elétrica e a cobertura vacinal muito acima de anos anteriores.
A dose contra a gripe teve acréscimo de 45,57% na população de idosos em comparação com o ano anterior, fornecendo indícios de que esse grupo migrou ou permaneceu nas praias durante o ápice da pandemia.
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